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Quinta, 18 de Fevereiro 2021

USUCAPIÃO DE BEM MÓVEL NO CARTÓRIO

 

Com a publicação do Provimento 65 de 14.12.2017, pelo CNJ, que estabeleceu as diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial nos serviços notariais e de registro de imóveis, os cartórios de notas e de registros de imóveis passaram a promover esse serviço de desjudicialização e efetivação dos direitos.

O Provimento 65/2017, os cartórios de notas, através da emissão de atas notariais e os cartórios de registro de imóveis, com o procedimento efetivo do processo, passaram a ter legitimidade para homologar os procedimentos administrativos da usucapião extrajudicial, desde que presentes os requisitos legais.

Palmilhando todo o Provimento 65/2017, o mesmo envolve a confecção da usucapião para bens “imóveis”, não tendo qualquer menção a possibilidade do procedimento administrativo para bens “móveis”, como veículos, por exemplo.

Recentemente o STJ declarou que o indivíduo que comprou e tem a posse de veículo pode propor usucapião, pois tem interesse de agir se o automóvel estiver registrado em nome de terceiro no Detran já que, com a sentença favorável, poderá regularizar o bem no órgão de trânsito. (STJ. 3ª Turma. REsp 1.582.177-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 25/10/2016 (Info 593).

É cediço que o domínio de bens móveis se transfere pela tradição, conforme preceitua o art. 1.267, CC. Com relação a veículos, a falta de transferência da propriedade no órgão de trânsito limita o exercício da propriedade plena, impedindo que o proprietário que não consta do registro realize ato inerente ao seu direito de propriedade, como o de negociar a venda ou de dar em garantia.

O professor Sílvio de Salvo Venosa, assim assentou acerca da usucapião de bens móveis:

"Por vezes, terá o possuidor de coisa móvel necessidade de comprovar e regularizar a propriedade. Suponhamos a hipótese de veículos. Como toda coisa móvel, sua propriedade transfere-se pela tradição. O registro na repartição administrativa não interfere no princípio do direito material. No entanto, a ausência ou defeito no registro administrativo poderá trazer entraves ao proprietário, bem como sanções administrativas. Trata-se de caso típico no qual, não logrando o titular regularizar a documentação administrativa do veículo, irregular por qualquer motivo, pode obter a declaração da propriedade por meio da usucapião.” (Direito Civil: Direitos Reais. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 264).

Com o advento do Novo Código de Processo Civil, através da Lei 13.105/2015, no art. 1.071, que incluiu novo artigo, art. 216-A, na Lei 6.015/73, foi assegurado que sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo.

A requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias; II - planta e memorial descritivo; III - certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente e IV - justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse.

O Provimento 65/2017 do CNJ trouxe a regulamentação necessária ao procedimento administrativo da usucapião extrajudicial.

Nesse sentido, tanto as disposições tangentes na Lei 6.015/73, como o Provimento 65/2017 do CNJ, evidenciam a possibilidade da usucapião extrajudicial sobre bens imóveis.

Desta feita, indaga-se, seria possível a utilização da usucapião extrajudicial sobre bens móveis, como veículos, na situação usual do comprador não promover a alteração administrativa da titularidade nos órgãos administrativos?

A primeira impressão seria negativa a resposta. Toda sistemática do Art. 216-A e do Provimento 65/2017 do CNJ indicam que a escolha do legislador foi pela opção da usucapião extrajudicial sobre bens imóveis.

Como aponta o professor e registrador Pedro Lamana Paiva, não seria possível por violar o princípio da legalidade. Assim ponderou o ilustríssimo registrador:

 

É possível a via extrajudicial para bens MÓVEIS? A meu ver não, pois a legislação se refere expressamente a usucapião extrajudicial de bens imóveis, processados no Registro de Imóveis. Para bens móveis não há norma que regulamente a atuação dos serviços extrajudiciais, regidos pela legalidade estrita”. (https://www.colegioregistralrs.org.br/wpcontent/uploads/2018/03/uh_152206883003.pdf)

A lição do professor Lamana é irretocável. O princípio da legalidade limitaria a atuação do notário para a usucapião sobre bens móveis.

Ocorre que, dialogando e buscando uma discussão sobre o tema, apontamos em uma possibilidade, senão vejamos.

O direito administrativo, nos ensina que o princípio da legalidade no direito privado, permite ao particular fazer tudo o que a lei não proíbe. Para a percepção do mesmo princípio para o direito público existiria uma subordinação da ação do administrador, em função do que estabelece a lei, de forma que ele só pode agir nos moldes e limites estabelecidos pela legislação, fazendo apenas o que a lei expressamente autorizar ou determinar.

Essa subordinação pode ser identificada por duas vertentes: o da vinculação negativa (negative bindung), segundo a qual a legalidade representaria uma limitação para a atuação do administrador, e o da vinculação positiva (positive bindung), segundo o qual a atuação dos agentes públicos, depende de autorização legal, como prescreve Ronny Charles e Fernando Ferreira (Direito Administrativo: 7ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2017, p. 307).

          Outrossim, a concepção clássica da legalidade, que impunha a exigência de que a lei predeterminasse de forma completa e absoluta toda a atuação da Administração, é incompatível com a mutabilidade e a complexidade das muitas relações contratuais, vem permitindo certa maleabilidade na aplicação das normas positivadas, que muitas vezes tem seus contornos alargados.

           A professora Raquel Carvalho, ensina que o desenvolvimento de técnicas de gestão pública, a desburocratização, a execução de políticas públicas, o uso preferencial de processos convencionais e a garantia de estabilização mínima das relações jurídicas justificaram a evolução da concepção clássica da legalidade estrita para a noção de juridicidade, apresentada como um conceito maior, que vincula a Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo, permitindo uma margem maior de autonomia, dentro dos limites apresentados pelo ordenamento constitucional. (Curso de Direito Administrativo, volume I, Salvador: Editora JusPodivm, 2015).

Com o Estado social, neoliberalismo, a perspectiva formal do princípio da legalidade (vontade determinada exclusivamente na Lei) passou a vislumbrar novos contornos principiológicos, como a celeridade, dignidade da pessoa humana, moralidade. Assim surge a concepção do princípio da juridicidade administrativa, superando a exclusiva vinculação positiva à lei.

Segundo a idade do princípio da juridicidade, a Professora e Ministra do Supremo Tribunal Federal Carmen Lúcia, ensina que o administrador público poderá utilizar não somente a Lei formal, mas todo o ordenamento jurídico (princípios e valores) para preencher as lacunas existentes no dia a dia do exercício da Administração Pública. (Princípios Constitucionais da Administração Pública, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1994).

Gustavo Calixto Guilherme, aponta que as leis formais não englobam todos os desafios enfrentados pelo administrador público. Com uma maior flexibilização baseada na Constituição Federal, criando a possibilidade de decisões com arrimo constitucional e principiologico, privilegiando o princípio da eficiência e tornando o procedimento mais célere. (https://gustavocg.jusbrasil.com.br/artigos/234274263/o-conceito-de-juridicidade-administrativa)

Nesse contexto, o princípio da juridicidade permitiria afastar a legalidade formal do Provimento 65/2017, para permitir a interpretação da possibilidade da usucapião em bens móveis, feito pelo notário.

Comprovando a possibilidade de flexibilizar o princípio da legalidade formal, em face dos princípios constitucionais da administração pública, como a plena efetividade processual, poderíamos apontar na possibilidade de interpretar o Provimento 65/2017 do CNJ, com a aquiescência da usucapião sobre bens móveis.

A posse, seja de bem imóvel seja sobre o bem móvel, é protegida pelo direito por traduzir a manifestação exterior do direito de propriedade.

Inclusive essa proteção prevalecerá, sobrepondo-se ao direito de propriedade, caso se estenda por tempo suficiente previsto em lei, consolidando-se a situação fática que é reconhecida pela comunidade, sem se perquirir sobre as causas do comportamento real do proprietário, como bem apontou o Ministro Marco Aurélio Bellizze, no julgamento do REsp 1.637.370.

A legislação civil é contundente ao apontar que aquele que exercer a posse de bem móvel, ininterrupta e incontestadamente, por cinco anos, adquire a propriedade originária, fazendo sanar todo e qualquer vício anterior (Art. 1.261 do Código Civil)

Nessa construção, poderia o notário, já que que a Lei o resguardou a comparência para lavratura das atas notariais, promover a abertura, notificações e confecção da ata notarial, para lavratura da usucapião sobre bens móveis.

Fazendo uma analogia dos requisitos legais e condições para a usucapião extrajudicial sobre bens imóveis, na usucapião sobre bens móveis, teríamos os seguintes requisitos:

A) Ata Notarial lavrada pelo tabelião com tempo de posse;

B) Documentação que comprove inexistência de débitos;

C) Justo título (documento que demonstra a efetiva aquisição da posse do bem) ou quaisquer outros documentos que demonstrem o tempo da posse, tais como pagamento de impostos e das taxas que incidirem sobre o bem;

D) Presença de advogado;

Com a apresentação dos documentos o notário procederá à intimação da pessoa em cujo nome estiver o bem para se manifestar no prazo de 15 (quinze) dias.

Caso não haja manifestação do interessado ou ainda, caso este manifeste sua concordância quanto ao pedido de usucapião e estando em ordem a documentação apresentada, o notário promoveria a comunicação do procedimento de usucapião do veículo ao órgão executivo de trânsito do Estado, conforme determina o Código de Transito Brasileiro, em seu artigo 134.

Art. 134. No caso de transferência de propriedade, o proprietário antigo deverá encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado dentro de um prazo de trinta dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação.

Assim sendo, restaria possível a promoção do procedimento da usucapião extrajudicial sobre bens moveis, promovendo uma interpretação do Provimento 65/2017 do CNJ, de forma sistemática, que é aquela que impede que as normas jurídicas sejam interpretadas de modo isolado, exigindo que todo o conjunto seja analisado simultaneamente e uma interpretação teleológica, que leva em consideração valores como a exigência do bem comum, o ideal de justiça, a ética, a liberdade, a efetividade processual e a busca efetiva da justiça.

Assim, a leitura e interpretação da usucapião sobre bem imóvel seria adaptada, também, para bens moveis, como os automóveis.

Não é de somenos importância salientarmos que para segurança do notário e para plena garantia do cliente que procura os serviços notarias, seja promovido consultas e diálogos com as Corregedorias Estaduais e com a própria Corregedoria Nacional de Justiça, para ampliar a interpretação do Provimento 65/2017, levando em consideração a desjudicialização das demandas consensuais.

 

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