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Segunda, 30 de Janeiro 2023

A instituição do condomínio edilício pelo registro da incorporação – Por Melhim Namem

A lei 14.382/2022 cria o Sistema Eletrônico de Registros Públicos – SERP, altera a Lei de Registros Públicos, com o propósito de adequar os serviços de registros públicos a novas tecnologias, e aperfeiçoa o sistema de proteção dos adquirentes de imóveis em construção, previsto pela Lei 4.591/64, consolidando requisitos de segurança patrimonial da aquisição, simplificando procedimentos registrais e reduzindo custos.

Especificamente em relação à Lei 4.591/1964, a nova lei introduziu alterações segundo as quais o condomínio especial, que o Código Civil denomina edilício, é instituído pelo registro da incorporação, antes de iniciadas as vendas (art. 32, “i”1e §§ 1º-A2 e 153), e, em consequência, o “habite-se” da edificação é objeto apenas de averbação, afastada a exigência de novo registro do condomínio (art. 444).

A alteração legislativa é justificada pela necessidade de compatibilizar a redação desses dispositivos (i) à tipificação da incorporação imobiliária como negócio jurídico de venda de frações ideais de terreno sob regime condominial conjugada com a construção de conjunto imobiliário, estabelecida pelo art. 29 da lei 4.591/19645, (ii) ao princípio da especialidade do sistema registral, segundo o qual a existência de direito de propriedade de bens imóveis é determinada pelo assentamento, no Registro de Imóveis, dos caracteres que identificam as frações de terreno como objeto de propriedade condominial, dotadas de “individualidade autônoma”6, e, em consequência, (iii) aos requisitos da livre disposição da propriedade e dos correspondentes direitos reais, de forma a viabilizar sua transmissão aos adquirentes, mediante registro de contrato no qual a descrição do imóvel (fração ideal e acessões) seja rigorosamente coincidente com os caracteres constantes do assentamento do Registro de Imóveis que identifica as frações do terreno como objeto de direito de propriedade condominial, sob pena de serem considerados “irregulares” (Lei 6.015/1973, art. 225).

A lei 14.382/22 tem vigência imediata e já vem sendo colocada em prática segundo normas editadas pelas Corregedorias estaduais, a exemplo do novo Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, instituído pelo Provimento CGJ nº 87, de 16/12/2022, cujo art. 1.351 dispõe taxativamente que “o registro da incorporação institui o condomínio edilício”7.

No âmbito da administração pública a Instrução Normativa nº 2.119/20228 da Receita Federal do Brasil (Anexo VIII) reconhece o registro da Incorporação Imobiliária como modo de instituição do condomínio edilício e prevê sua inscrição no CNPJ, ainda que em construção.

Contudo, ainda  há quem se insurja contra a unicidade do registro, entendendo que a lei teria criado “um regime de condomínio especial que vigora temporariamente” e que por isso persistiria a exigência de novo registro por ocasião da conclusão da construção, partindo da equivocada premissa de que “até o registro da instituição do condomínio existe um só imóvel, formado pelo terreno e acessões que lhe vão sendo agregadas à medida que construído o prédio, ou prédios”, daí se concluindo que somente edificações dotadas de habitabilidade  poderiam ser objeto de condomínio especial/edilício9.

Ao sugerir a efetivação de dois registros de condomínio, um “temporário” e outro “definitivo”, essa interpretação se contrapõe aos propósitos de simplificação e redução de custos visados pela lei, até porque a Lei 14.382/2022 não criou nenhuma nova modalidade de condomínio, apenas se refere à qualificação da propriedade condominial já anteriormente caracterizada no art. 29 da Lei 4.591/1964.

Além disso, a afirmação de que no curso da construção “existe um só imóvel” é incompatível com o sistema da Lei 4.591/1964, afrontando especificamente seus arts. 29 e 32, “i”, § 1º-A, que dispõem sobre a divisão do terreno e sobre a identificação das frações ideais daí resultantes como objeto de propriedade condominial especial, a que se vincularão as unidades imobiliárias projetadas.

Há também quem entenda que a lei pretendeu criar mais uma espécie de situação proprietária condominial (“regime condominial especial”, “condomínio por frações autônomas”), sugerindo a criação de mais uma denominação – “condomínio protoedilício” -, fundamentando-se em que “a existência física da edificação é um pressuposto para o condomínio edilício”10.

A proposição parece sustentar-se em que a natureza jurídica do direito de propriedade de bens imóveis sob regime de condomínio especial/edilício (isto é, regime jurídico caracterizado pela combinação da propriedade exclusiva e com a propriedade comum sobre uma mesma coisa) seria determinada pela configuração física do bem imóvel.

É verdade que o tema envolve uma certa complexidade, mas essa interpretação despreza os arts. 8º11 e 9º12 da Lei 4.591/1964, que deixam absolutamente claro que o condomínio especial pode ter por objeto a copropriedade de edificação com “habite-se” ou de “terreno onde não houver edificação”, ou, ainda, de lotes de terreno sem construção, como prevê o art. 1.358-A do Código Civil, pois, como bem ilustra André Abelha, “o condomínio não precisa de tijolos para nascer, bastando o registro do ato de instituição no registro imobiliário.”13

E despreza também o mais importante efeito do registro da incorporação como mecanismo de proteção dos direitos patrimoniais dos adquirentes, que viabiliza a atribuição do direito real de aquisição mediante registro dos contratos de comercialização e, até mesmo, a averbação dos instrumentos preliminares de ajuste, que confere direito real aquisitivo aos adquirentes nos termos do § 4º do art. 35. Ignora, ainda, que é a existência de condomínio instituído mediante assentamento no Registro de Imóveis que confere efetividade à limitação da responsabilidade financeira dos adquirentes em relação à garantia de financiamento da construção, que só pode ser contida na proporção das frações ideais, nos termos do art. 1.488 do Código Civil14, se o condomínio edilício tiver sido instituído pelo registro da incorporação, antes de iniciadas as vendas.

Desconsidera, ainda, que os efeitos da instituição de condomínio se projetam sobre todo o campo dos direitos reais, assegurando efetividade ao exercício das prerrogativas dos adquirentes, entre elas a de destituir o incorporador em caso de paralisação da obra ou atraso, sem justa causa, que só é juridicamente viável se o condomínio estiver constituído, porque é o condomínio que tem legitimidade para promover o procedimento extrajudicial de destituição, que, aliás, também foi instituído pela mesma Lei 14.382/2022.

Ora, desde a promulgação da Lei 4.591, em 1964, nunca houve qualquer objeção a que o direito de propriedade incida sobre terra nua para fins de incorporação ou terreno com edificação averbada, pois, em qualquer desses casos, a propriedade pode ser atribuída sob regime de condomínio geral, pro indiviso, ou de condomínio especial, por frações autônomas.15

Recorde-se, a propósito, que a caracterização do condomínio especial e da incorporação imobiliária foi entronizada no direito positivo brasileiro pela Lei 4.591/1964, que os separou em dois Títulos. No Título I, a lei dispõe sobre o condomínio especial, caracterizado pela conjunção de partes de propriedade exclusiva e partes de propriedade comum de edificações coletivas (arts. 1º ao 27), e no Título II a lei caracteriza a incorporação imobiliária como negócio jurídico de venda de frações ideais de terreno e acessões caracterizadas como objeto de condomínio especial (arts. 28 ao 70).

O art. 7º dispõe sobre a instituição de condomínio por ato entre vivos ou por testamento, tendo por objeto edificações com habite-se, enquanto o art. 8º dispõe sobre a instituição de condomínio “em terreno onde não houver edificação”.

Anote-se, por relevante, que apesar de o art. 7º (condomínio em edificações) foi sucedido pelos arts. 1.331 e seguintes do Código Civil, mas o art. 8º permanece em vigor por não ter sido derrogado e por não haver lei posterior que tenha tratado da matéria.

A despeito da divisão da Lei 4.591/1964 em dois segmentos, há neles disposições comuns à disciplina do condomínio e da incorporação imobiliária.

É o caso do art. 8º, que, ao exigir a instituição de condomínio “em terreno onde não houver edificação” para fins de incorporação imobiliária, opera necessariamente em articulação com a regra do art. 29 da mesma Lei 4.591/1964, que caracteriza essa atividade como negócio jurídico de venda de frações de terreno “sob regime condominial”, e também em articulação com o art. 6º da Lei 4.864/1965, compondo um conjunto normativo que disciplina a instituição de condomínio especial/edilício sobre terreno destinado à realização de incorporação imobiliária.

Assim, em matéria de instituição de condomínio especial, coexistem a regra do art. 1.332 do Código Civil, cujo objeto é o condomínio de edificação com habite-se, instituído pelo registro, no Registro de Imóveis, do respectivo instrumento público ou particular, inter vivos ou causa mortis, e, ainda, a regra da lei 4.591/1964 (arts. 8º e 32, “i”, § 1º-A), cujo objeto é o condomínio de frações ideais de terreno destinado à realização de incorporação imobiliária, que, instituído pelo registro do respectivo memorial, afasta a exigibilidade de novo registro de instituição.

Não bastasse a profusão e o emaranhado de disposições legais que tratam do tema, em razão da qual a leitura apressada de um ou outro dispositivo, isoladamente, pode induzir o intérprete conclusões irrefletidas, a falta de uniformidade terminológica sobre o tema também pode comprometer a compreensão do instituto.

A doutrina tem chamado a atenção para a diversidade de denominações,16 tais como condomínio em edificação (lei 4.591/1964, art. 7º e CC, arts. 1.331 e ss), condomínio edilício (CC, art. 1.331), regime condominial especial (lei 4.591/1964, art. 32, “i”, § 1º-A), condomínio de terreno “onde não houver edificação”, destinado a uma incorporação ou a várias incorporações (lei 4.591/1964, arts. 8º e 32 e lei 4.864/1965, art. 6º), condomínio de lotes de terreno (CC, art. 1.358-A), entre outras.

Sabendo-se, por elementar, que a natureza jurídica não é determinada pela configuração física do imóvel, mas, sim, pelos elementos de caracterização estabelecidos em lei, basta considerar o conteúdo normativo do art. 32, “i”, § 1º-A, da Lei 4.591/1964, e do art. 1.332 do Código Civil para se constatar que condomínio especial e condomínio edilício são expressões idênticas, designam a mesma espécie de propriedade.

Portanto, a diversidade terminológica não importa em diversidade da natureza jurídica do condomínio especial/edilício, observando Orlando Gomes que “qualquer dessas denominações pode ser aceita”17, dada a rigorosa identidade dos elementos de caracterização estabelecidos pela lei 4.591/1964 (art. 32, alínea “i”) e pelo Código Civil18, a saber, (i) determinação das frações ideais sobre o terreno e partes comuns, (ii) identificação dos apartamentos ou “unidades isoladas entre si”, existentes ou a construir e (iii) destinação do imóvel.

Bem a propósito, Caio Mario da Silva Pereira, autor do anteprojeto que deu origem à Lei 4.591/1964, em diversas passagens de sua clássica obra Condomínio e Incorporações, utiliza a expressão “condomínio especial” como sinônimo de propriedade horizontal, ou seja, condomínio edilício19.

É como também entende Francisco Eduardo Loureiro: “Após a vigência da alteração legislativa, se discutiu se o condomínio especial a que alude a L. 4.591/64 é o condomínio edilício dos arts. 1.331 e seguintes do Código Civil. Não resta dúvida alguma que se trata de instituto único, que somente recebeu nomes diversos nas duas leis”20.

Assim também esclarecem os Enunciados de Interpretação nº 8921 da I Jornada de Direito Civil e nº 10022 da I Jornada de Direito Processual Civil, segundo os quais todas essas diferentes denominações designam o mesmo condomínio especial, independente da configuração física do imóvel e das diferentes denominações que a lei lhes atribua, seja condomínio edilício ou regime condominial especial.

Retomando a apreciação das alterações introduzidas pela Lei 14.382/2022, importa ter presente que, ao consolidar em caráter definitivo as normas que definem o registro da incorporação como modo de instituição do condomínio especial/edilício mediante ato único, essa lei não chega a inovar, pois se limita a compatibilizar a redação dos arts. 32 e 44 da Lei 4.591/1964 ao conteúdo normativo do seu art. 29.

É o caso da adequação da redação do art. 32, caput.

Partindo da caracterização legal da atividade e do contrato de incorporação imobiliária como negócio jurídico de “venda de frações ideais de terreno (…), sob regime condominial” (…) mediante “vinculação entre a alienação das frações do terreno e o negócio de construção” (lei 4.591/1964, art. 29 e parágrafo único), a Lei 14.382/2022 dá nova redação ao art. 32 mediante substituição da locução genérica “negociar sobre unidades autônomas” por “alienar ou onerar as frações ideais de terrenos” e respectivas acessões.

Sabendo-se, assim, que a incorporação imobiliária é negócio jurídico de alienação de frações ideais de terreno vinculadas a unidades autônomas projetadas, resulta claro que o exercício dessa atividade e a celebração desse contrato têm como requisito essencial a divisão do terreno e a sujeição das frações ideais daí resultantes ao regime da propriedade condominial, tal como configurado no art. 29.

É o registro da incorporação que confere existência legal às frações de terreno e respectivas acessões sob regime condominial especial e viabiliza sua alienação válida e eficaz, à luz do princípio da especialidade do sistema registral, segundo o qual, as frações resultantes da divisão do terreno devem ser identificadas como objeto de direito de propriedade em assentamento no Registro de Imóveis, com “sua representação escrita como individualidade autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna inconfundível e, portanto, heterogêneo em relação a qualquer outro”, como ensina Afrânio de Carvalho.23

O “regime condominial” a que o art. 29 da Lei 4.591/64 se refere não é o condomínio geral definido pelos arts. 1.314 e ss do Código Civil, que sujeitaria os adquirentes e o incorporador à “concorrência de direitos iguais na mesma coisa”24, sob regime da indivisão do objeto e divisão dos sujeitos.

Trata-se, diferentemente, de um condomínio especial por frações ideais de terreno dotadas de autonomia e identificadas pela destinação do terreno e pela sua vinculação às unidades imobiliárias projetadas, descritas no memorial de incorporação25, cujo registro constitui o “ato formal (…) que qualifica o terreno (como um todo) e as suas respectivas frações, que passam a estar vinculadas às futuras unidades autônomas e, de modo mais abrangente, ao ‘negócio da construção’ e ao próprio negócio incorporativo.”26

Consideradas as distintas conformações, funcionalidade e dinâmica do imóvel objeto do condomínio, a lei 4.591/1964 (arts. 34 e ss) e o Código Civil (arts. 1.333 e ss) instituem diferentes regimes de gestão do condomínio para a fase da construção e para a fase da fruição do conjunto imobiliário, atribuindo a administração do condomínio no curso das obras a uma comissão de representantes composta por três adquirentes, nomeada no contrato de construção, se for o caso, ou eleitos em assembleia geral dos condôminos convocada pelo incorporador até seis meses após o registro da incorporação.

Em relação a esse período merecem atenção certas peculiaridades, situações ou procedimentos operacionais típicos da fase da construção, que a lei identifica mediante emprego da expressão “condomínio da construção”, e disso são exemplos (i) o art. 31-F, § 1º, e o art. 43, § 3º,27 que se referem à deliberação de assembleia geral para constituição do condomínio especial/edilício, nos casos em que o incorporador não o tiver constituído por ocasião do registro da incorporação e vier a falir ou a ser destituído, e (ii) o art. 213 da lei 6.015/1973,28 cujo § 10 distingue a representação do condomínio em procedimento de retificação de registro, dispondo no inciso I que o condomínio geral será representado por qualquer condômino e no inciso II que condomínio especial será representado pelo síndico a partir do habite-se e pela comissão de representantes quando ainda em fase de construção, situação na qual o identifica como “condomínio por frações autônomas”.

Nesse período, e até que seja concluída a edificação, cabe à comissão de representantes a gestão do condomínio, inclusive em juízo, em todos os assuntos de interesse dessa coletividade; o acompanhamento da construção a partir dos demonstrativos trimestrais que receberá do incorporador; a prática dos atos necessários à preservação do fluxo normal da obra, inclusive medidas judiciais e extrajudiciais relacionadas ao procedimento de destituição do incorporador em casos de paralisação ou retardamento injustificado da obra e, ainda, de insolvência, para as quais essa comissão está investida em mandato legal para, em caso de inadimplemento de obrigações dos adquirentes ou do incorporador (em casos de insolvência ou destituição), promover leilão das respectivas frações ideais e acessões visando a satisfação de créditos do patrimônio da incorporação, entre outros atos de representação em geral ou previstos expressamente pela Lei 4.591/1964.

O mandato legal da comissão de representantes expira por ocasião da conclusão da obra, quando o condomínio passará a ser administrado por um síndico e demais órgãos de representação definidos pelos arts. 1.333 e seguintes do Código Civil (sobre o uso e a administração do condomínio após o habite-se)29.

O critério legal de representação do condomínio por uma comissão de representantes em vigor há mais de meio século tem se mostrado adequado à administração de situações de crise da empresa incorporadora de que resultem a paralisação ou o retardamento da obra, sem justa causa, e veio a ser consolidado pelas normas da Lei 14.382/2022 que instituem procedimento extrajudicial de destituição do incorporador, cuja efetividade depende, obviamente, da regular existência do condomínio especial30.

Do mesmo modo que a falta de uniformidade na denominação do condomínio especial é irrelevante, também o fato de a lei empregar expressões distintas para identificar situações fáticas típicas da fase da construção não importa em alteração de nenhum dos elementos de caracterização do condomínio especial/edilício estabelecidos pelos arts. 8º e 32 da lei 4.591/1964, pelo art. 6º da lei 4.864/1965 e pelo art. 1.332 do Código Civil, pois, a despeito da diversidade terminológica, há um só condomínio especial/edilício, constituído pelo registro da incorporação.

Uma vez concluída a construção e à vista da certidão do habite-se, as unidades que integram a edificação assimilarão automaticamente o regime jurídico do terreno por simples efeito do princípio superficies solo cedit (observada a destinação e a discriminação definidas no projeto e no memorial de incorporação), registrando Pontes de Miranda que “a acessão àquelas [partes indivisas] beneficia a todos os comunheiros e a acessão a essas [partes divisas] somente àquele ou aqueles a que tocam as partes divisas, razão por que o mesmo fato pode beneficiar a todos e a algum ou a alguns, conforme o que acede se integra na parte indivisa ou na parte divisa.”31

Assim é porque a lei não excepciona o princípio da acessão em relação à construção realizada sobre terreno fracionado para realização de incorporação imobiliária,32 daí porque também no caso da incorporação imobiliária a edificação se incorpora ao solo com o mesmo regime jurídico do condomínio especial já dotado dos elementos de caracterização estabelecidos pelo art. 1.332 do Código Civil.

Isso é o que deflui da nova redação dada pela lei 14.382/2022 ao art. 44 da lei 4.591/1964, pela qual foi suprimido o trecho que dispunha que a construção seria averbada “para efeito de individualização e discriminação das unidades”, passando esse dispositivo a exigir apenas a “averbação da construção em correspondência às frações ideais discriminadas na matrícula”, tendo em visa os efeitos do fenômeno da acessão na formação do produto oriundo da atividade empresarial da incorporação imobiliária.

A leitura do art. 44 em articulação com as disposições antecedentes, evidencia que todas essas regras compõem um conjunto normativo formulado em conformidade com os fundamentos dos direitos reais e do sistema registral, pois a edificação retratada na certidão de habite-se nada mais é do que a descrição da configuração física definitiva das acessões incorporadas ao solo e por isso o registrador se limita a averbar a construção sem alterar o regime jurídico do solo em que foi implantada, que anteriormente já havia sido qualificado como condomínio especial/edilício pelo registro da incorporação.

Efetivamente, como bem observa Marcus Vinícius Motter Borges, na medida em que o condomínio edilício (ou condomínio especial) foi instituído pelo registro da incorporação, resulta claro que “a averbação da construção é apenas ato informativo acerca da conclusão das obras do empreendimento e não se confunde com a instituição de condomínio edilício.”33.

De fato, como é de conhecimento corrente, a averbação “não muda nem a causa nem a natureza do título que deu origem à inscrição, não subverte o assento original, tão somente o subentende”, como ensina Afrânio de Carvalho34, observando Francisco Eduardo Loureiro que, na incorporação imobiliária, “concluída a edificação e expedido o habite-se, haverá mera averbação do fato na matrícula do condomínio já anteriormente instituído”.35

Afinal, não se pode esquecer que o produto da atividade da incorporação imobiliária se forma por efeito natural do fenômeno da acessão, e é por isso que comporta apenas “averbação da construção em correspondência às frações ideais discriminadas na matrícula” (lei 4.591/1964, art. 44), sem duplicação do registro do condomínio especial/edilício já instituído pelo registro da incorporação.

Bem consideradas as disposições legais que compatibilizam as normas sobre os atos registrais ao conteúdo normativo do art. 29 da lei 4.591/1964, resulta claro o propósito de conferir efetividade à instituição de condomínio como mecanismo de proteção dos direitos patrimoniais dos adquirentes de imóveis em construção, o que  consolida a afirmação de Caio Mário da Silva Pereira no sentido de que “a grande inovação instituída pela lei 4.591/1964 foi a criação de direito real, instituído em favor dos adquirentes de unidades, como também do incorporador, com o registro da incorporação” (destaques do autor)36

Assim, esse conteúdo normativo é preservado pela alteração legislativa introduzida pela Lei 14.382/2022 que assegura a efetividade do sistema registral e incorpora ao ordenamento novos e decisivos mecanismos de segurança jurídica capazes de assegurar o exercício das prerrogativas dos adquirentes a partir da instituição de condomínio edilício pelo registro da incorporação.

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1 Lei 4.591/64: Art. 32. “O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos: (…) i) instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão;” (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)

2 Lei 4.591/64: Art. 32 (…). § 1º-A “O registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos.”  (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)

3 Lei 4.591/64: art. 32 (…). § 15. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único.    (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

4 Lei 4.591/64: “Art. 44. Após a concessão do habite-se pela autoridade administrativa, incumbe ao incorporador a averbação da construção em correspondência às frações ideais discriminadas na matrícula do terreno, respondendo perante os adquirentes pelas perdas e danos que resultem da demora no cumprimento dessa obrigação. (…)” (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)

5 Lei 4.591/64: Art. 29. “Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial (…). Parágrafo único. Presume-se a vinculação entre a alienação das frações do terreno e o negócio de construção, (…).”

6 CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 247.

7 Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro editado pelo Provimento nº 87/2022: “Art. 1.351. O registro da incorporação imobiliária institui o condomínio edilício, ensejando a cobrança de emolumentos por um único ato (art. 32, §§ 1º-A e 15º, da Lei nº 4.591/1964). Parágrafo único. Exigir-se-á o registro da convenção de condomínio concomitantemente ao da averbação da construção, caso ainda não tenha sido registrada.”

8 ITEM 1.1.44 NATUREZA JURÍDICA (NJ) Condomínio Edilício: NJ 308-5. DATA DO EVENTO Data de registro da convenção ou data de registro da assembleia que deliberou sobre a inscrição no CNPJ. (quando não existir convenção) ATO CONSTITUTIVO (REGRA GERAL) Convenção do condomínio registrada no RI, acompanhada da ata de assembleia de eleição do síndico, registrada no RTD; OU, caso não exista a convenção, Certidão emitida pelo RI que confirme o registro do Memorial de Incorporação do condomínio, acompanhada da ata de assembleia que deliberou sobre a inscrição no CNPJ, e da ata de assembleia de eleição do síndico, registradas no RTD. BASE LEGAL CC, arts. 1.332 a 1.334, 1.347 e 1.348; Lei nº 4.591/1964, arts. 3º, 7º, 9º, 22 e 32.

9 RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila, O regime jurídico-registral da incorporação imobiliária à luz da Lei 14.382/22, in Migalhas, acesso em 24.1.2023.

10 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias e TARTUCE, Flávio, Condomínio protoedilício e condomínio edilício: distinções à luz da lei 14.382/22 (Lei do SERP) in Migalhas, acesso em 24.01.2023.

11 Lei 4.591/1964: “Art. 8º Quando, em terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário deste ou o promitente cessionário sobre ele desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte:”

12 Lei 4.591/1964: “Art. 9º Os proprietários, promitentes compradores, cessionários ou promitentes cessionários dos direitos pertinentes à aquisição de unidades autônomas, em edificações a serem construídas, em construção ou já construídas, elaborarão, por escrito, a Convenção de condomínio, e deverão, também, por contrato ou por deliberação em assembleia, aprovar o Regimento Interno da edificação ou conjunto de edificações. (…)”.

13 ABELHA, André,  Incorporação imobiliária e condomínio edilício antes do habite-se: unidade futura, condomínio de construção e suas perplexidades tonitruantes in Migalhas, acesso em 25/01/2023

14 Código Civil: “Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito.”

15 O tema é tratado mais detidamente em nosso Incorporação Imobiliária, GenForense, 7. ed., 2023, itens 1.4.3 e 2.1.1.

16 Observa Caio Mário da Silva Pereira que “O Código Civil de 2002 trata do condomínio especial dos edifícios coletivos nos seus arts. 1.331 a 1.358, sob o título ‘Do Condomínio Edilício’, denominação que criticamos durante toda a fase da elaboração do Projeto do Código, sem sucesso. Cabe o registro, aliás, que esta espécie de condomínio recebeu denominações as mais variadas, ‘propriedade horizontal” (…); ‘condomínio especial’; condomínio de edifícios divididos em planos horizontais’, e ‘copropriedade de prédio de apartamentos’, dentre muitas outras” (PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil. Revista e atualizada por Carlos Edison do Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: GenForense, 25. ed., 2017, p. 182.

17 GOMES, Orlando, Direitos Reais. Rio de Janeiro: GenForense, 19. ed., 2009.Atualizador Edson Fachin, p. 250.  Diz o autor: “A terminologia não é uniforme. Insiste-se em qualificá-la, acentuando um dos seus aspectos, como condomínio, acrescentando, para distingui-lo do ordinário ou geral, as seguintes expressões: relativo, sui generis, por andares ou apartamentos de edifícios com apartamentos autônomos, condomínio em edificações, ou condomínio especial em edifícios. Qualquer dessas denominações pode ser aceita.”

18 Código Civil: “Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: I – a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns; II – a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns; III – o fim a que as unidades se destinam.”

19 A exemplo dos seguintes trechos: “Que é esta propriedade horizontal, ou este condomínio especial, por unidades autônomas?” (p. 70); “… a noção deste condomínio especial na associação da propriedade exclusiva da unidade com a copropriedade do solo e partes comuns” (p. 77); “a propriedade horizontal ou o condomínio especial por unidades autônomas compreende um sistema…” (p. 77); “… sem o que não se constitui a propriedade horizontal, ou o condomínio especial” (p. 78); “… o cumprimento do testamento importará na criação do condomínio especial, em que cada legatário ou herdeiro testamentário receberá a propriedade individual da unidade autônoma…” (p. 95); e “… promovam a constituição do condomínio especial sob regime de propriedade horizontal…” (pp. 95-96). PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 15. ed. rev., atual. e ampl. Atualizadores: Melhim Chalhub e André Abelha. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

20 LOUREIRO, Francisco Eduardo, Código Civil comentado. Coord. Ministro Cezar Peluso. 17. ed., 2023. Comentário ao art. 1.331 do Código Civil.

21 I Jornada de Direito Civil – Enunciado 89: “O disposto nos arts. 1.331 a 1.358 do novo Código Civil aplica-se, no que couber, aos condomínios assemelhados, tais como loteamentos fechados, multipropriedade imobiliária e clubes de campo.”

22 I Jornada de Direito Processual Civil – Enunciado 100: Extensão da expressão “condomínio edilício” no CPC/73: “Interpreta-se a expressão condomínio edilício do art. 784, X, do CPC de forma a compreender tanto os condomínios verticais, quanto os horizontais de lotes, nos termos do art. 1.358-A do Código Civil.”

23 CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 247

24 GOMES, Orlando, Direitos Reais, cit., p. 240.

25 FLORENZANO, Zola, Condomínio e Incorporações: Comentários à Lei de Estímulo à Construção Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1966, pp. 106/110.

26 BORGES, Marcus Vinicius Motter, Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. Coord. Marcus Vinicius Motter Borges. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2d ed., 2022, p. 410.

27 Lei 4.591/1964, com a redação dada pela Lei 14.382/2022: “§ 3º A ata de que trata o § 2º deste artigo, registrada no registro de títulos e documentos, constituirá documento hábil para: (…); c) à inscrição do respectivo condomínio da construção no CNPJ”

28 Lei 6.015/1973: “Art. 213. O oficial retificará o registro ou a averbação: (…). § 10. Entendem-se como confrontantes os proprietários e titulares de outros direitos reais e aquisitivos sobre os imóveis contíguos, observado o seguinte: I – o condomínio geral, de que trata o Capítulo VI do Título III do Livro III da Parte Especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado por qualquer um dos condôminos; II – o condomínio edilício, de que tratam os arts. 1.331 a 1.358 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado pelo síndico, e o condomínio por frações autônomas, de que trata o art. 32 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, pela comissão de representantes.”

29 CHALHUB, Melhim Namem, Incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: GenForense, 7.Ed., 2023, p.83.

30 CHALHUB, Melhim Namem, Incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: GenForense, 7.Ed., 2023, p.407/423.

31 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado. São Paulo: RT, 12. ed., §§ 1.206 e 1.211.

32 Só por expressa definição legal é possível excepcionar o princípio da acessão, como é o caso da concessão do direito de superfície, que “é substancialmente uma suspensão ou interrupção da eficácia do princípio da acessão” (Ricardo Cesar Pereira Lira, O direito de superfície. Ensaio de uma teoria geral. Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro n. 38, 1979). É também o que decorre da concessão de direito de laje. Em ambos os casos é excepcionado o princípio da acessão com a consequente bifurcação da propriedade, de que resultam propriedades distintas, cada uma delas dotada de autonomia (CC, arts. 1.369 e ss, Estatuto da Cidade, arts. 21 e ss e CC, arts. 1.510-A e ss).

33 BORGES, Marcus Vinicius Motter, Curso …, cit., p. 481.

34 CARVALHO, Afrânio de, Registro de imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 110. Diz o autor: “A averbação não muda nem a causa nem a natureza do título que deu origem à inscrição, não subverte o assento original, tão somente o subentende. A estrutura de uma inscrição não pode, portanto, ser mudada pela averbação de um ato retro operante, podendo apenas servir de substrato a um ato que, reconhecendo a existência inteiriça, em um instante do tempo, daí parte para dar-lhe nova figura em instante ulterior.

35 LOUREIRO, Francisco Eduardo, Código Civil comentado. Coord. Ministro Cezar Peluso. 17. ed., 2023. Comentário ao art. 1.331 do Código Civil.

36 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 15. ed. rev., atual. e ampl. Atualizadores: Melhim Chalhub e André Abelha. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 331.

Autores:

Melhim Namem Chalhub é advogado, membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM), do Instituto dos Advogados Brasileiros e da Academia Brasileira de Direito Civil.

Daniella Rosa é advogada do Escritório Chalhub Advogados Associados e especialista em Direito Imobiliário pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ).

Fonte: Migalhas

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