Desafetação, é a situação do bem que não está vinculado a nenhuma finalidade pública específica.
1. A impossibilidade da desafetação das áreas de domínio público
São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno, todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem, conforme estabelece o art. 98, do CC/02.
Os bens públicos são classificados em bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens de uso dominical, conforme estabelece o art. 99, do CC/02. São bens públicos: a) os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; b) os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; c) os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial não podem ser alienados enquanto conservarem essa qualificação. Já os bens dominicais podem ser alienados respeitando as disposições da Lei de Licitações, segundo os arts. 100 e 101, do CC/02.
2. Aquisição dos bens públicos
Os bens públicos aderem ao patrimônio do Município por diversos negócios jurídicos: doação, herança vacante, dação em pagamento, arrecadação de imóveis abandonados, desapropriação, compra e venda, terras devolutas, consórcio imobiliário ou os bens destinados ao domínio público na aprovação de loteamentos.
3. Desafetação
Afetação é a condição do bem público que está servindo a alguma finalidade pública. Exemplo: o prédio público onde funciona um hospital da prefeitura é um bem afetado à prestação desse serviço. Desafetação, ao contrário, é a situação do bem que não está vinculado a nenhuma finalidade pública específica. Exemplo: terreno baldio pertencente ao Estado. Os bens de uso comum do povo e de uso especial sempre possuem uma afetação específica. Já os bens dominicais são aqueles bens que pertencem a Administração e não são usados para uma finalidade pública, tal como o exemplo do terreno baldio.
A desafetação é a manifestação de vontade do Poder Público em alterar a sua classificação, a sua afetação, a sua destinação, alterando de bem de uso comum do povo para uso especial, ou de uso especial para bem de uso comum do povo, ou um ou outro para bem dominical.
4. Bens públicos originados de projetos de loteamento
A administração pública é autorizada pela lei de licitações a alienar os bens públicos, mediante processo de licitação na modalidade concorrência, adotando como critério de julgamento o tipo “melhor oferta”, ou excepcionalmente a dispensa de licitação.
Em tese, isso pode ser realizado pela Administração Pública para todos os bens que ingressaram no seu patrimônio. Todos eles podem alienados, onerosa ou gratuitamente a terceiros, sejam particulares ou entes do Poder Público. Acontece que a desapropriação, a arrecadação de imóveis abandonados e os terrenos públicos nos loteamentos possuem uma afetação pré-estabelecida, que não pode ser modificada arbitrariamente pela administração. Na desapropriação, cabe a administração utilizar o bem para a finalidade para o qual foi realizado o ato administrativo e se pretender aliená-lo, cabe o direito de preferência ao expropriado. Na arrecadação de imóvel abandonado o legislador definiu os usos que seriam permitidos nesses imóveis, para fins habitacionais, serviços públicos, regularizaçãoo fundiária e equipamentos públicos. Não é diferente em relação aos loteamentos.
Quando os bens de uso comum do povo ou de uso especial são decorrentes de projetos de loteamento, o art. 17, da lei 6.766/79 proíbe que o loteador altere a destinação dos “espaços livres de uso comum, as vias e praças, as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo”. O objetivo da norma jurídica é vedar ao empreendedor a alteração das áreas destinadas à comunidade. Portanto, não faz sentido à administração fazê-lo. As áreas não são postas a tutela da Administração com o propósito de confisco, mas como forma de salvaguardar o interesse dos administrados.
Ensina Paulo Affonso Leme Machado que retirou-se de modo expresso o poder dispositivo do loteador sobre as praças, as vias e outros espaços livres de uso comum, mas, de modo implícito, vedou-se a livre disposição desses bens pelo Município. Este só teria liberdade de escolha, isto é, só poderia agir discricionariamente nas áreas do loteamento que desapropriasse e não naquelas que recebeu a título gratuito. Do contrário, estaria o município se transformando em município-loteador através de verdadeiro confisco de áreas, pois receberia as áreas para uma finalidade e, depois, a seu talante as destinaria para outros fins.
Conforme estabelece o art. 22, caput, da lei 6.766/79, desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.
Após o registro essas áreas são incorporadas ao patrimônio público e o entendimento pacificado na doutrina e jurisprudência é pela impossibilidade de alteração dessa destinação.
Como bem ensina a ilustre jurista Lúcia Valle Figueiredo, é dever do município o respeito a essa destinação, não lhe cabendo dar às áreas que, por força da inscrição do loteamento no registro de imóveis passaram a integrar o patrimônio municipal, qualquer outra utilidade. Não se insere, pois, na competência discricionária da administração resolver qual a melhor finalidade a ser dada a estas ruas, praças e demais áreas públicas. A destinação já foi preliminarmente determinada.
O Decreto-lei 58, de 10/12/37 é a norma anterior a lei 6.766/79, que regulamentava os parcelamentos. Estabelece em seu art. 3º que “a inscrição torna inalienáveis, por qualquer título, as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e da planta”.
Declarando inalienáveis, por efeito do registro do memorial e da planta, as vias de comunicação e os espaços livres deles constantes, colocou-os a lei fora de comércio, tornando-os inegociáveis. O antigo CC/02 estabelecia no art. 520 que, perde-se a posse das coisas pela perda ou destruição delas, “ou por serem postas fora do comércio”; e o art. 69 tem como “coisas fora do comércio as insuscetíveis de apropriação, e as legalmente inalienáveis”. Logo, e a conclusão é irresistível, desde o momento em que o memorial e a planta de loteamento se registram, as vias de comunicação e os espaços livres, ex vi legis, se tornam inalienáveis. Em consequência, são postos fora do comércio; de onde a perda, para o loteador, de sua posse sobre elas.
Inclusive o STF afirma que o art. 3º, do decreto-lei 58/37 já estabelecia a impossibilidade de alteração da destinação dessas áreas públicas, circunstância que não foi alterada com a novel legislação, que tornou mais rigorosa essa exigência.
5. Anuência dos adquirentes
O art. 28, da lei 6.766/79, estabelece regra sobre a alteração ou cancelamento parcial do registro do loteamento. Se pretende realizar uma alteração no desenho e memorial descritivo, transferindo a titularidade das áreas públicas, é importante observar a anuência dos adquirentes dos lotes que serão afetados com essa alteração.
É comum os adquirentes do lote, no ato de compra, escolherem a localização dos lotes de acordo com a posição das áreas verdes, praças, escolas, jardins. E a localização dos lotes próximos a esses equipamentos geralmente valoriza o preço de mercado da unidade imobiliária. Eventual alteração no desenho do loteamento ou no seu memorial descritivo pode, eventualmente, causar prejuízos aos proprietários dos lotes, representando uma quebra contratual, com a mudança, pelo loteador ou pela prefeitura, unilateralmente, das funções de certos terrenos destinados à coletividade. Por isso, o legislador determina a anuência dos adquirentes que serão afetados com a alteração do projeto de loteamento.
6. Lei de Licitações
Na maior parte dos casos, a Administração Pública pretende desafetar os bens públicos de uso comum do povo ou de uso especial para fins de alienação. Acontece que a alienação dos bens públicos municipais precisa observar o disposto no art. 76, I, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (lei 14.133/21), procedendo-se ao certame licitatório na modalidade leilão, adotando-se a melhor oferta como critério de julgamento. Também poderá ser realizada a dispensa de licitação.
Em ambos os casos é preciso autorização legislativa, avaliação do imóvel, manifestação do interesse público e o devido processo de dispensa dessa licitação fundamentado no art. 72, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Com frequência, as Prefeituras promovem permutas de áreas públicas nos loteamentos por áreas particulares. Esse tipo de negócio jurídico representa alienação de bem público imóvel, que demanda respeito aos princípios que norteiam as licitações públicas, admitindo-se, como exceção, amplamente fundamentada, a dispensa da licitação.
Não significa que adotando os critérios da Lei de Licitações estará o Poder Público autorizado a alteração a destinação dos imóveis ou aliená-los. A jurisprudência tem indicado a necessidade de serem analisados conjuntamente os arts. 4º, 17, 22, 28, 43 e 50, da lei 6.766/79.
7. Direitos dos adquirentes
Segundo Laerte Sampaio, desembargador do TJ/SP, “a lei 6.766/79 é bastante clara em afirmar que os espaços livres de uso comum, as vias e praças, as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo, não poderão ter sua destinação alterada pelo loteador, desde a aprovação do loteamento. Com a inscrição do loteamento e a aquisição do lote emerge o direito subjetivo material do adquirente de se opor a quaisquer alterações que descaracterizem o projeto e lançar mão das vias jurisdicionais para que seja respeitado. O dever de respeitar o projeto aprovado e o memorial registrado passa para o Município, que não está autorizado a alterar a destinação das vias públicas para atender interesses particulares de grupo econômico”.
Parece evidente, portanto, que o objetivo do legislador foi dar aos adquirentes dos lotes a garantia de que as condições objetivas do loteamento, dentre as quais as de uso (art. 6°, e 9º, §2°, V), não poderiam ser alteradas de forma a desconfigurar aquilo que consta do projeto. Daí ter sido previsto que qualquer alteração do loteamento registrado dependeria de acordo entre o loteador e os adquirentes, devendo ser averbada no registro originário (art. 28).
8. Sanções
O art. 43, da lei 6.766/79 considera que há implicações de natureza administrativa, cível e criminal, indicando a necessidade de serem aplicadas sanções. Neste caso, o loteador ressarcirá a prefeitura Municipal ou o Distrito Federal quando for o caso, em pecúnia ou em área equivalente, no dobro da diferença entre o total das áreas públicas exigidas e as efetivamente destinadas.
Jamilson Lisboa Sabino é mestre e Doutor em Direito. Professor de Direito Urbanístico. Autor, dentre outros livros, de “Lei de Parcelamento do Solo comentada artigo por artigo”.
Fonte: Migalhas