Ao pronunciar o próprio nome, a pessoa se vê, se autodefine, se apresenta, se distingue em seu meio social ou profissional. O nome individualiza e representa alguém. Por acompanhar a pessoa durante a vida e continuar a existir mesmo depois da morte, o nome é um dos principais traços da identidade do ser humano[2].
Muitas vezes, o nome da pessoa é a primeira informação que se recebe antes do próprio contato interpessoal. Signo, o nome adianta no imaginário do outro, ao ser lido ou pronunciado, como é a pessoa nominada.
Nas situações em que as pessoas são apresentadas vis-à-vis, os nomes também não ficam em segundo plano, pois reveladores da identidade, indicativos da origem social, familiar ou cultural.
Enfim, em qualquer contexto, a identidade está definitivamente ligada ao nome. Tanto é assim que a proteção à personalidade e à dignidade do indivíduo é conferida em nosso ordenamento jurídico por esta característica: há expressa vedação no Código Civil sobre a utilização do nome por terceiros, em publicações ou representações que exponham o indivíduo ao desprezo público, ainda que inexista intenção difamatória (artigo 17) ou em propaganda comercial sem autorização (artigo 18).
Elemento importante da personalidade, o nome é escolhido por terceiros, os pais, como regra, ou, em alguns casos, por representantes de instituições de acolhimento de crianças.
Com o passar do tempo, o nome (ou parte dele) pode ser fonte de constrangimento ou sofrimento. Há casos em que as pessoas passam a ser conhecidas por nome diverso do oficial, o chamado novo batismo social, porque renomeadas na família ou em outros segmentos do meio social. Chegam a estranhar os nomes escolhidos pelos pais, constantes no registro civil. Há, ainda, indivíduos que se autoavaliam em gênero diverso do denominado sexo jurídico ou registral. Outro possível desconforto relacionado ao nome tem origem em conflitos familiares.
Não são raras as crianças cuidadas como verdadeiros filhos por avós, padrastos e madrastas ou parentes em geral. Diante da relação filial estabelecida pelo vínculo afetivo duradouro, é genuína a vontade de incluir, no nome, o sobrenome dos cuidadores, considerados os verdadeiros pais para quem recebeu afeto e atenção, como modo de expressão da integridade identitária.
Mais que a inclusão de nome socioafetivo, no entanto, o abandono na infância e o abuso de toda ordem são causas de rompimento do vínculo original de afeição, e podem gerar o desejo inverso: a eliminação do nome que remete ao vínculo inexistente ou rompido. Nessas hipóteses, o Poder Judiciário tem reconhecido o direito à exclusão do nome do ofensor. Há casos de ruptura do vínculo afetivo; em outros, nem sequer estabelece-se a relação.
Até pouco tempo, alterações desse tipo sofriam grande resistência, privilegiando-se, no geral, os princípios da segurança jurídica, das relações sociais e da imutabilidade do nome. Entretanto, precedentes de diversos tribunais vêm consolidando interpretação mais flexível dos princípios registrais e da lei.
Do princípio da imutabilidade dos nomes
A redação original do artigo 58, da Lei de Registros Públicos, acerca da definitividade do prenome, ou seja, de sua imutabilidade, foi flexibilizada por novos diplomas legais. Passou a permitir a substituição do prenome por apelidos públicos notórios ou em razão de coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime.
Além disso, a Lei de Registros Públicos faculta a alteração do nome no primeiro ano após a maioridade civil, com a ressalva de que não poderá prejudicar “os apelidos de família”. O intuito da norma, que abrange o prenome e os demais componentes do nome, é resguardar a segurança jurídica.
Com o tempo, a proteção a terceiros cedeu lugar ao direito individual. Não por outro motivo, o artigo 16, do Código Civil de 2002, incluiu o nome como direito da personalidade.
A regra geral ainda é a da imutabilidade, “abrandada no sentido de se atender ao uso, constante, diuturno, que se faz do nome que se porta, não apenas como meio de identificação, ou sinal exterior distintivo da pessoa, mas também, e principalmente, considerando-se o direito da personalidade nele ínsito”[3]. A jurisprudência tem flexibilizado essa regra para os sobrenomes, inclusive.
O pedido de retificação de assento civil, em regra, deve ser feito em ação com rito de jurisdição voluntária, amparado por justo motivo, sem prejuízo a terceiros[4], nos termos do artigo 57, da Lei 6.015/1973.
Registre-se que a justificativa de caráter subjetivo relevante, como é o motivo religioso, por exemplo, pode não ser suficiente para configurar o justo motivo exigido em lei[5].
A Lei de Registros Públicos ressalta a excepcionalidade da modificação do nome e impõe ao interessado a apresentação de pedido motivado para o acolhimento do pleito; o “justo motivo” repetido nas decisões judiciais sobre o tema.
Diante da fluidez do conceito do “justo motivo”, a análise do que possibilita a modificação dos nomes é altamente subjetiva, construída pela jurisprudência de nossos tribunais.
Uma das possibilidades consagradas na jurisprudência é a supressão de sobrenome em decorrência de abandono afetivo ou da prática de abuso, antes da idade adulta, perpetrado por um dos genitores.
O tema se reveste de muita importância na vida das pessoas atormentadas pelo abandono ou abuso parental. Nesses casos, a modificação do nome pode ser terapêutica: o novo nome é a afirmação da identidade instituída por escolha reparatória, superados os laços idealizados no assento de nascimento original.
A motivação excepcional fundamentada
Embora a análise da jurisprudência indique a flexibilização do princípio da imutabilidade, os tribunais brasileiros não autorizam a alteração de nome, diante da ausência de prova sobre o “justo motivo” do constrangimento ou sofrimento pelo uso do nome.
São muitos os acórdãos negando alterações dos mais diversos tipos – algumas bastante simples —, alegando o princípio da imutabilidade e sustentando que o nome não pode ser alterado por simples desejo do titular.
No caso de constrangimento decorrente de nome extravagante ou exótico, faz sentido a exigência de prova. O sofrimento com piadas, mensagens provocativas em redes sociais ou declarações de terceiros, é passível de aferição.
No caso da modificação do nome por abandono afetivo ou abuso das relações parentais, a prova do constrangimento ou sofrimento pelo uso do nome, assim como a definição de “justo motivo”, pode adquirir outros contornos.
O artigo 229, da Constituição Federal, dispõe sobre o dever dos pais de assistir, criar e educar os filhos menores. O dever de assistência é fundado na solidariedade familiar. Do mesmo modo, a Constituição Federal (artigo 227) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 4º) dispõem sobre a proteção integral da criança e do adolescente como deveres dos genitores e da família de forma geral, bem como da sociedade e do Estado. Em qualquer caso, deve ser observado o interesse dos menores.
O abandono pelo genitor (ou genitores) e o abuso nas relações entre pais e filhos podem causar dores profundas no indivíduo, que permeiam suas relações sociais e escolhas futuras. Carregar o nome do genitor ausente ou abusivo pode ser fonte de constrangimento e dor insuperável. O sofrimento é íntimo e renovado a cada vez que o nome é pronunciado e repetido.
Nesse caso, o constrangimento é fruto de traumas e vivências que a ausência ou o abuso causam no íntimo do portador do nome familiar.
A ausência de genitor ou a prática abusiva contra o filho, especialmente na infância e na adolescência, pode fazer com que a vítima compare a sua situação familiar com a de amigos e colegas, gerando sentimentos de inferioridade e de falta de autoconfiança. Pode, ainda, causar extrema dificuldade para lidar com situação que, para outros, seria trivial, como as transformações físicas na transição entre a infância e a adolescência.
É a intimidade ferida do indivíduo e como ele se enxerga no seio familiar e na sociedade que são abalados, e levam à necessidade de livrar-se de tudo aquilo que lembra o genitor ou a genitora, como o sobrenome familiar ou o prenome.
Como provar a dor do portador do nome? Como provar a dor nunca revelada em público? Nem sempre os danos psicológicos têm projeção pública. Ou seja, não são, necessariamente, fatos de fácil comprovação. Muitas vítimas de abandono afetivo ou abuso recolhem a dor, de modo que o sofrimento pessoal não é objeto de conversas ou qualquer tipo de exposição. Muitos adultos funcionais tratam seus constrangimentos e sofrimentos de forma discreta e íntima. O ajuizamento da ação, em si, já faz evidenciar algum constrangimento[6].
Os tribunais vêm, em muitos casos, exigindo prova não apenas do abandono ou do abuso, como do dano psicológico. O encerramento precoce de ações, por falta de provas, tem sido superado por parte da jurisprudência[7]. As ações de modificação, para a exclusão de nome familiar (ou prenome relacionado a ascendentes ausentes), têm sido cada vez mais frequentes, especialmente por conta do desenvolvimento do tema do abandono afetivo.
Da jurisprudência atual
Em decisão de outubro de 1997[8], a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça permitiu a exclusão do sobrenome paterno em virtude de abandono do autor ainda na infância, uma vez que se sentia exposto ao ridículo por carregar o sobrenome de uma pessoa que não conhecia.
Em seu voto, o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira defendeu a necessidade de o processo civil e o direito material serem instrumentos políticos e sociais, devendo abolir-se a “interpretação gramatical da lei, procurando o máximo de integração sistemática e teleológica para substituir o já ultrapassado rigorismo legal”.
A afetividade vem sendo tema de discussões acaloradas no direito de família, seja pelo lado da aquisição da condição de filiação por meio da socio-afetividade, seja pelas consequências (patrimoniais ou não) do abandono afetivo.
Vários são os julgados que, diante de motivos justos e suficientemente provados, permitem a supressão de sobrenome, sob o fundamento de que o princípio da imutabilidade não é absoluto; deve ser interpretado em consonância com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Em boa parte das ações, os pedidos são fundamentados em abandono afetivo e material, de modo que os requerentes não encontram sentido na manutenção do sobrenome de alguém que jamais contribuiu com a formação individual ou familiar. Outras vezes, os pedidos são fundamentados em brigas familiares, com posterior ruptura dos laços de afeto.
Adriana Chieco é advogada e sócia do escritório Chieco Advogados, especialista em direito de família e planejamento sucessório.
Camila Ieracitano Macedo Maia é advogada e sócia do escritório Chieco Advogados, especialista em direito de família.
Mabel Tucunduva Prieto de Souza é advogada, sócia do escritório Chieco Advogados e ex-procuradora de Justiça no Ministério Público do Estado de São Paulo, especialista em direito de família e direito imobiliário.
Fonte: ConJur