Fica inaugurada hoje a “Oficina Notarial e Registral”, uma seção da coluna Migalhas Notariais e Registrais destinada à publicação de peças práticas do quotidiano das serventias. Ela ladeará a seção “Doutrina Notarial e Registral”, que, até agora, hegemonizou a coluna. Portanto, o leitor terá acesso tanto a peças práticas quanto a artigos doutrinários.
Hoje, reproduzimos a manifestação do registrador Sérgio Jacomino (São Paulo) no procedimento administrativo nº 1057614-05.2021.8.26.0100 (Acesso aqui) que tratou de questão interessantíssima: o cabimento ou não de averbação de restrições construtivas nas matrículas de imóveis.
As manifestações e peças práticas aqui publicadas serão acompanhadas de decisões de procedência ou não e servem para o fomento dos estudos e debates acerca de questões que chegam às serventias notariais e registrais.
Carlos E. Elias de Oliveira
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Questão preliminar – não se trata de dúvida
Embora a requerente postule que “seja suscitada dúvida à autoridade competente, nos termos do artigo 198 da lei 6.015/73”, o fato é que o ato, caso consumado, se aperfeiçoará como mera averbação e, consoante a firme orientação jurisprudencial de São Paulo, não cabe a suscitação de dúvidas com base no dispositivo legal supracitado1.
O direcionamento do pedido deveria ser feito à Eg. 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo. Todavia, uma vez protocolado o pedido diretamente nesta Serventia, aproveitando o princípio da liberdade das formas em processos administrativos (art. 188 do CPC) e prestigiando a celeridade e economia processuais, peço vênia a Vossa Excelência para já veicular as razões pelas quais as averbações pleiteadas pela Companhia não foram por nós deferidas.
Minuta de ato registral
A COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO – METRÔ formulou requerimento para que se proceda à averbação de “restrição construtiva” nas matrículas que indicou “por estarem próximas às instalações operacionais do METRÔ e pela possibilidade de alienação” dos ditos imóveis. Sugeriu a seguinte redação para a prática do ato averbatório:
“Face à proximidade deste imóvel com as estruturas do Metrô, qualquer projeto previsto para a área não deverá interferir fisicamente e nem induzir esforços ou alívios adicionais àqueles computados no dimensionamento definitivo dessas estruturas. Dessa forma, os projetos com parecer técnico de consultor especializado, assegurando que o empreendimento proposto não causará danos à integridade das estruturas existentes, deverão ser submetidos previamente à Companhia do Metropolitano de São Paulo – METRÔ”.
Em face do pedido – e da “minuta” algo heterodoxa -, devolvemos o título preliminarmente, rogando, ao interessado, que fundamentasse o seu pedido, justificando a prática do ato.
A única fundamentação foi de que outras serventias já teriam praticado tal ato, o que julgamos um fundamento jurídico de todo insuficiente.
A hipótese trazida pelo METRÔ suscita os temas de restrição ou limitação à propriedade – ou mais limitadamente da hipótese de mera obrigação com eficácia real.
Antes de deferir o pedido e proceder à averbação, era necessário perquirir qual seria a natureza jurídica do seu objeto, o que foi feito com a nota devolutiva indicada na petição.
Quid juris? Restrição, limitação ou mera obrigação?
Afinal, qual o fundamento legal a dar base à pretendida averbação?
A doutrina há muito distingue as figuras enunciadas supra. São bastante conhecidas as lições de PONTES DE MIRANDA no deslinde que faz entre restrição e limitação de direito.
A expressão restrição refere-se a atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam o seu exercício. O “domínio não é ilimitável”, dirá o tratadista. “A lei mesma estabelece limitações. Nem é irrestringível. A lei contém regras dispositivas de restrição e os negócios jurídicos podem restringi-lo. As mais características das restrições são as restrições reais, ditas servidões”, remata1-A.
Segundo o mesmo autor, as limitações ao conteúdo do direito de propriedade, lato sensu, ocorrem:
Ao passo que as restrições de domínio atraem as regras e princípios de direito privado, na consideração de que os negócios jurídicos possam diminuir ou mitigar o exercício dos direitos dominiais – como por exemplo no caso de servidão, usufruto, uso etc. – em face das limitações prepondera um elemento de conformação do próprio direito. Essas limitações encontram sua fonte na lei (fundamentalmente) ou em decisões jurisdicionais. Em regra, tais vicissitudes não dependem da publicidade registral, já que se projetam e vinculam todos – privados ou não.
O escopo da lei 6.015/1973, Lei de Registros Públicos, é a garantia de autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos previstos pela legislação civil (art. 1º). O Registro de Imóveis é a contraparte formal na tutela de interesses privados. Já as limitações ao conteúdo do direito de propriedade atinem com o interesse público e são em regra irregistráveis (ou, como no caso se pretende: averbáveis), por decorrerem da própria lei.
SERPA LOPES, dirá que as servidões legais escapam ao registro imobiliário “por lhes faltar conteúdo transcritível e pela sua íntima natureza, atento prescindir de título para sua existência”. Submetem-se a um regime legal especial, diz, “v. g., proibição de não ultrapassar determinada altura nas proximidades da zona de defesa militar”. As restrições legais (como as servidões ditas “legais”) não se confundem com as servidões prediais, não estando, portanto, subordinadas à inscrição imobiliária .
O mesmo raciocínio se adota aqui: as limitações legais não se acham subordinadas à inscrição.
A lei 13.097/2015 e a concentração na matrícula
Embora não agitado pela interessada, poderíamos voltar nossos olhos ao inciso III do art. 54 da lei 13.097/2015 que prevê a “averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados”.
A restrições convencionais nada mais são do que negócios jurídicos celebrados entre particulares no pleno exercício da autonomia da vontade. Conformam-se à lei, estritamente falando, como nos casos em que se restringe o exercício dos direitos dominiais. Já as ditas “restrições” (rectius: limitações) administrativas são as que se originam da lei ou de uma sentença judicial.
São variados os exemplos de limitações administrativas: obrigação de não edificar acima do gabarito previsto, não proceder ao desmatamento de uma área ambiental sensível, observância, pelo particular, de áreas non ædificandi, e tantas outras hipóteses encontráveis de sobejo, por exemplo, nos planos diretores das grandes cidades.
No caso concreto, pretende o METRÔ vincular terceiros que poderão vir a adquirir imóveis que hoje estão na titularidade da Companhia. Porém, não é dado ao proprietário impor, a si próprio, limitações ao exercício dos poderes que são inerentes ao estatuto jurídico da propriedade. Não se pode gravar e limitar o próprio direito real e modificar a estrutura prototípica da propriedade.
É evidente que o sucessor, caso queira construir, reformar ou demolir, empreender reformas estruturais, deverá aprovar o projeto na municipalidade, que certamente procederá às inspeções do projeto e levará em consideração as circunstâncias peculiares das áreas em questão e em conformidade com as leis urbanísticas.
De outra banda, sempre será possível ao METRÔ, na defesa de seus interesses, manejar as ações de nunciação de obra nova (art. 1.299 do CC).
Obrigações propter rem
A hipótese também poderia convocar as figuras de obrigações propter rem, em que se dá uma prestação específica que vai involucrada num direito real. Porém, não se pode alterar (em regra) a substância dos direitos reais (tipicidade), muito menos de modo unilateral, gravando-os.
Revérberas dos direitos reais, as obrigações ditas propter rem devem estar previstas em lei. Em suma: a lei veda a autolimitação da propriedade e as ditas “limitações administrativas” devem buscar seu fundamento na lei ou na jurisdição.
Averbações – numerus apertus
A ilustre representante do METRÔ acena com a possibilidade de se consumar a averbação tendo em conta o fato de que o rol do inciso II do art. 167 da lei 6.015/1973 seria meramente exemplificativo, indicando, como precedente, o REsp 1.161.300/SC, julgado pela Segunda Turma do STJ.
Vamos por partes.
Concorda-se em termos com a afirmação da representante da COMPANHIA. O rol dos atos averbatórios é, de fato, um numerus apertus, conclusão a que se chega conjugando-se o dispositivo do art. 246 com o inc. II do art. 167 da LRP.
O objeto de averbações são as circunstâncias que de algum modo alterem o registro, restringem-se a situações constitutivas, modificativas ou extintivas de direitos anteriormente inscritos.
Em princípio, a averbação serve, como dizia SERPA LOPES, “para tornar conhecida uma alteração da situação jurídica ou de fato, seja em relação à coisa, seja em relação ao titular do direito real”2. E concluiria mais adiante:
“Convém salientar, no entretanto, que esta enumeração não se deve tomar como uma formalidade restrita aos mesmos, mas, mui ao contrário, de vez que se trata de um ato acessório, tendente a publicar as mutações de índole secundária, em relação ao imóvel ou à pessoa do titular de direito sobre o mesmo, lícito é interpretá-lo de um modo mais amplo, admitindo-se a averbação mesmo para outros atos ou fatos análogos, ou ainda que simplesmente interessem a uma publicidade mais completa, acerca da situação do imóvel em todos os seus sentidos”3.
Muito embora as averbações não se achem estereotipadas num rol ocluso – ou como se diz: em um numerus clausus -, isto não quer significar que qualquer circunstância possa legitimar o acesso ao sistema registral, sob pena de transformar o Registro de Imóveis numa mixórdia informativa.
O próprio AFRÂNIO DE CARVALHO, a seu tempo, diria que o “registro não é o desaguadouro comum de todos e quaisquer títulos, senão apenas daqueles que confiram posição jurídico-real”4. A regra que deve imperar é a de que “não é inscritível nenhum direito que mediante a inscrição não se torne mais eficaz do que sem ela”5. Em suma: a “averbação não muda nem a causa nem a natureza do título que deu origem à inscrição, não subverte o assento original, tão somente o subentende”.6
E aqui chegamos ao ponto em que o problema pode ser diretamente enfrentado. As averbações têm a natureza e o condão de constituir, modificar ou extinguir direitos já inscritos – excetuadas aquelas averbações que, por desvio sistemático do legislador, perderam o caráter de acessoriedade e ingressam na tábula com o signo de principalidade, constituindo direitos. São exemplos as cauções locatícias, as penhoras e outras da mesma natureza.
O pleito da CIA DO METROPOLITANO não decorre de atos e negócios jurídicos que se formam sob a égide do direito privado e que são corolários do princípio da autonomia da vontade. Tampouco se refere a circunstâncias de fato averbáveis – como as mutações físicas do bem, mudança de numeração predial, construção e demolição de acessões etc. O pleito parece calhar no âmbito das limitações ao próprio direito, ferindo os elementos que constituem o plexo do estatuto jurídico da propriedade (art. 1.228 do CC).
Não estamos a tratar, aqui, de mera modificação dos atos e fatos inscritos (art. 246 da LRP) – as tais “sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro” -, mas a modificar o próprio estatuto jurídico da propriedade privada.
As circunstâncias a que alude a representante são evidentemente relevantes, merecem acolhida, é certo, mas o fundamento legal não se acha bem ajustado, nem os instrumentos jurídicos, de que poderia eventualmente se servir, foram bem especificados, salvo melhor juízo.
Em interessante precedente da Eg. CGJSP, discutia-se a averbação premonitória do ajuizamento da ação de constituição da servidão administrativa “para fins de publicidade a uma questão de alta relevância (passagem de dutos de gás natural)”.
A “alta relevância da matéria”, em momento algum contestada, não foi razão suficiente para, de per si, deferir a averbação. O instrumento jurídico para produzir os efeitos de publicidade jurídico-real seria o registro da servidão, não a simples notícia do ajuizamento da ação:
“Em outros termos, neste caso concreto a mutação jurídico-real do direito de propriedade consiste na constituição de servidão administrativa que para efeito de publicidade deve ser lançada na matrícula mediante ato de registro em sentido estrito, não se prestando a averbação do ajuizamento da ação de servidão, já julgada, para contornar exigência feita para o registro”7.
Afinal, trata-se de uma servidão de direito privado? Estamos diante de uma servidão administrativa? Há lei urbanística que limite ou autorize gravar o bem do METRÔ? Se positivo, quais são? Nos atos expropriatórios dos imóveis para construção da estação há qualquer pista que pudesse servir de base para a averbação?
Estas são questões que somente o requerente poderá responder com a utilização do instrumento jurídico adequado para atendimento dos seus interesses. Os meios jurídicos para se atingir os relevantes objetivos aqui apresentados não foram tentados e esta não é a via, sempre salvante melhor juízo.
STJ – o precedente citado
Para não deixar de responder à representante – que indicou um importante precedente do STJ – permita-me Vossa Excelência traçar alguns comentários.
Trata-se do REsp. 1.161.300-SC , relatado pelo ministro HERMAN BENJAMIN8, cujo tema enfrentado naquele r. aresto não guarda inteira relação com o pleito aqui deduzido – e isso pelas seguintes razões.
Conclusões
Entendo inviável a averbação tal e como postulada pela COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO.
Reconheço tratar-se de tema muito relevante e que está a demandar uma ação efetiva da COMPANHIA para tutelar e proteger os cidadãos em face dos riscos que uma construção fora dos padrões estruturais poderia representar.
Entendo, todavia, que a via eleita não é a juridicamente adequada para o caso concreto.
Certamente Vossa Excelência poderá apreciar o pleito do METRÔ (do qual sou usuário muito satisfeito e um entusiasta desse modal de transporte) e decidir o que de Direito.
Apresento a Vossa Excelência os protestos de elevada estima e distinta consideração.
São Paulo, 28 de maio de 2021. SÉRGIO JACOMINO, Oficial.
Referências:
1 Brevitatis causa: Ap. Civ. 2036956-49.2021.8.26.0000, Cruzeiro, dec. de 3/5/2021, Dje 3/5/2021, des. Ricardo Mair Anafe. Acesso aqui.
1-A MIRANDA. Pontes. Tratado. Tomo XI. São Paulo: Borsoi. § 1.163. Limitações e restrições.
2 SERPA LOPES. Miguel Maria. Tratado. Vol. IV. 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos S/A. 1961, p. 196.
3 Op. cit. p. 199.
4 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 283.
5 Op. loc. cit.
6 Op. cit.
7 Processo 1000368-41.2017.8.26.0472, Porto Ferreira, dec. de 8/3/2019, Dje 19/3/2019, decisão do desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco. Acesso aqui.
8 REsp 1.161.300-SC, j. 22/2/2011, Dje 11/5/2011, rel. min. Herman Benjamin. Acesso aqui.
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*Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) para o biênio 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.
Fonte: Migalhas