Por Flávio Ricarte e Eduardo Manzeppi
Com a evolução da tecnologia, especialmente no âmbito das redes sociais, novos questionamentos sobre herança digital começaram a aparecer na mídia. Você já parou para pensar no assunto?
Hoje em dia quase metade da população mundial “vive” em alguma rede social. Isso corresponde a quase 4 bilhões de usuários ativos, que têm o seu próprio patrimônio virtual, dentre eles: fotos, vídeos, áudios, games, músicas, filmes, centenas de mensagens particulares, moedas virtuais e senhas de banco.
Nesse sentido, é preciso diferenciar o patrimônio digital com valoração econômica, daquele que não o possui. Os que não possuem valor econômico servem como manutenção de relações de afeto e comunicacionais, com fim meramente informativo, já os bens digitais com valor econômico geram renda, são negócios. Temos como exemplos: músicas, textos, fotos, filmes, poemas e livros.
Nessa toada há também os conhecidos “Influenciadores Digitais” e “Youtubers” que, por meio da contabilidade de seguidores e engajamento dos seus posts, vendem a menção de um produto ou serviço nas suas redes sociais e blogs.
Inevitavelmente, no direito, vivemos, por vezes, um momento de ruptura e de mudanças. Nesse caso, o tema ainda carece de uma lei estabelecida em nosso país. Ocorre que, sem a devida previsão legal, não há respaldo para a proteção do conceito no mundo dos fatos.
O que deve ser feito, então, com todo o patrimônio digital depois que um usuário morre?
A sucessão em síntese é a transmissão da herança. Esta, por sua vez, numa classificação mais conservadora, é reconhecida como o conjunto de direitos e obrigações (patrimônio) transmitidos com a morte do indivíduo. O Código Civil de 2002, em seu artigo 1857, §2º, permite que o testamento tenha um conteúdo extrapatrimonial. Alguns doutrinadores têm recomendado aos titulares das contas eletrônicas que registrem sua manifestação de vontade ainda em vida, com um bom planejamento sucessório e o registro de um testamento.
Em 2019, dois Projetos de leis que tratavam do tema “herança digital” tramitavam no Congresso. Um deles era o PL 4.847, de 2012, que visava estabelecer normas de herança digital. O referido projeto definia que:
“A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes: I – senhas; II – redes sociais; III – contas da Internet; IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido”.
Não obstante, o PL 4.099, de 2012, visava garantir aos herdeiros a transmissão de todos os conteúdos de contas e arquivos digitais. Assim previa:
“Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos. Ainda, foi escrito que caberia ao herdeiro: I – definir o destino das contas do falecido; a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou; b) apagar todos os dados do usuário ou; c) remover a conta do antigo usuário”.
Os dois projetos de lei foram arquivados.
Em 2017 foi proposto o PL 7.742/17, que aguarda parecer do relator na Câmara dos Deputados. O texto visa incluir um artigo 10-A no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), que estabelece que os provedores de aplicações de internet devam excluir as respectivas contas de usuários mortos logo após a comprovação da morte, desde que se tenha um requerimento do cônjuge, companheiro ou parente maior de idade.
Além disso determina que mesmo após a exclusão das contas, os provedores mantenham os dados e registros armazenados pelo prazo de um ano, a partir da data da morte, ressalvado requerimento cautelar de prorrogação da autoridade policial ou do MP. A Lei do Marco Civil da internet estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Ela assegura entre os direitos dos usuários da internet a:
(i) inviolabilidade da intimidade e da vida privada (Artigo 7º, I), (ii) a preservação do sigilo das comunicações privadas transmitidas ou armazenadas (Artigo 7º, II, III); (iii) a proteção contra o fornecimento de dados pessoais coletados pela internet a terceiros sem prévio consentimento do titular (Artigo 7º, VII); (iv) o direito a informações claras e completas sobre o tratamento de dados pessoais (Artigo 7º, VIII) e (v) a prerrogativa do consentimento expresso e destacado sobre o tratamento destes (Artigo 7º, XI).
Tais projetos têm como objetivo garantir ao morto sua privacidade e intimidade. E, quando a herança digital tiver valor econômico garantirá, também, que faça parte do inventário/partilha. Afinal, se há valor patrimonial, cabe sucessão.
Aos poucos, casos relacionados à herança digital vêm aparecendo diariamente para o judiciário decidir. Em decisões recentes, alguns magistrados têm entendido que tais direitos possuem natureza personalíssima. Assim, diversos pedidos têm sido sentenciados como ilegítimos, pois ferem o direito à intimidade da pessoa humana.
Diante disso, as novas formas de patrimônio e herança exigem um rápido e claro posicionamento do ordenamento jurídico brasileiro, pois, passamos a experimentar novos desafios no direito, como é o caso neste momento, do tratamento do legado profissional e o respeito à privacidade da pessoa, inclusive após a sua morte.
Eduardo Manzeppi, advogado, membro da Comissão de Direito Eletrônico da OAB-MT e da Comissão Nacional de Tecnologia Juridica do CFOAB.
Flávio Ricarte, advogado, membro da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões da OAB-MT, membro do IBDFAM-MT (Instituto Brasileiro de Direito de Família).
Fonte: Conjur