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Segunda, 29 de Setembro 2025

Artigo – Desjudicialização: A política do CNJ para uma Justiça Eficaz

Por Marcelo Lessa da Silva

Análise mostra o potencial da desjudicialização brasileira, com cartórios e filtros italianos, como referência global para frear a hiperjudicialização.

Introdução

O direito fundamental de acesso à Justiça, consagrado no constitucionalismo contemporâneo, enfrenta no Brasil um desafio de escala monumental: a hiperjudicialização. Em 2023, o Poder Judiciário brasileiro recebeu um volume recorde de 35 milhões de processos novos, culminando em um acervo total de 83,8 milhões de ações pendentes (CNJ, 2024). Este cenário de sobrecarga estrutural não apenas compromete a celeridade, como também impõe um custo social e econômico insustentável.

Em contraponto, uma revolução silenciosa, protagonizada pelas serventias extrajudiciais, vem redesenhando o mapa do acesso à Justiça. O modelo brasileiro se diferencia de outras nações de tradição latina, onde notários e registradores são frequentemente vinculados ao Poder Executivo. No Brasil, a Constituição Federal estabeleceu um sistema peculiar e robusto: o serviço é prestado em caráter privado, mas por delegação do Poder Judiciário, que normatiza e fiscaliza a atividade. Essa característica singular transforma o foro extrajudicial em um braço forte, imparcial e capilarizado da própria Justiça, alinhado às necessidades dos jurisdicionados.

Este artigo analisa, em perspectiva comparada, os modelos de desjudicialização do Brasil e da Itália, defendendo a tese de que, embora a Itália tenha um sistema consolidado de filtros processuais obrigatórios (MAIA, 2023), o Brasil desenvolveu uma infraestrutura extrajudicial mais robusta e funcionalmente diversificada, cujo potencial, se combinado à lógica dos filtros italianos, pode criar um paradigma inovador e eficiente de justiça multiportas.

  1. A cultura da litigiosidade: Um ciclo vicioso de sobrecarga

Os números oficiais do CNJ pintam um quadro alarmante. O acervo de 83,8 milhões de processos significa que o Judiciário levaria aproximadamente 2 anos e 5 meses para zerar seu estoque, mantido o ritmo atual (CNJ, 2024). O problema, contudo, não reside na produtividade de magistrados e servidores. Pelo contrário, os dados demonstram um esforço hercúleo para dar vazão à demanda: o IPM – Índice de Produtividade da Magistratura cresceu 6,8% em 2023, com uma média de 8,6 casos solucionados por juiz a cada dia útil (CNJ, 2024).

A raiz da crise está no ciclo vicioso gerado pela cultura da litigiosidade, alimentada por um acesso à Justiça irrestrito e pela ausência de filtros pré-processuais eficazes. O surgimento de novos direitos e a percepção social de que o Judiciário é a única via para a resolução de conflitos resultam em um ingresso avassalador de novas ações, sobrecarregando a máquina judiciária e perpetuando a morosidade. Mesmo com recordes de produtividade, o estoque continua a crescer porque a “porta de entrada” é larga demais. Torna-se, portanto, imprescindível a criação de mecanismos que exijam a demonstração concreta do interesse de agir antes que o aparato judicial seja movimentado.

É nesse contexto que o paradigma da Justiça multiportas (multi-door Courthouse), idealizado por Frank Sander e introduzido no Brasil pela resolução CNJ 125/10, ganha força (FOGAÇA; SOUZA NETTO; PORTO, 2021). A proposta de transformar os tribunais em centros de triagem, encaminhando cada conflito à “porta” mais adequada, valoriza a consensualidade e estabelece uma relação de complementaridade, e não de rivalidade, entre as esferas judicial e extrajudicial.

  1. A desjudicialização à brasileira: O foro extrajudicial como aliado do Estado e da cidadania

A estratégia brasileira de desjudicialização materializa-se na delegação progressiva de competências ao foro extrajudicial. Essa delegação é a manifestação de uma aliança: o Poder Judiciário, assoberbado por demandas que não envolvem litígio (jurisdição voluntária), transfere a execução desses atos a agentes dotados de fé pública. Atos como divórcios, inventários, usucapião e adjudicação compulsória migraram para as mais de 12.512 serventias extrajudiciais (ANOREG/BR, 2024), garantindo uma capilaridade que nenhuma outra instituição possui.

Os resultados dessa política são expressivos. Desde 2007, os mais de 2,3 milhões de inventários e 1 milhão de divórcios realizados em cartório geraram uma economia estimada de R$ 6,2 bilhões e R$ 2,7 bilhões, respectivamente (ANOREG/BR, 2024). Essa transferência de atribuições é sustentada pela confiança da população: uma pesquisa do Instituto Datafolha revelou que os cartórios são a instituição mais confiável do Brasil, com nota média de 7,9 em 10 (ANOREG/BR, 2024).

A legislação recente tem aprofundado essa colaboração. A lei 13.484/17, ao alterar a lei de registros públicos (lei 6.015/1973), instituiu os “ofícios da cidadania”, autorizando os cartórios de registro civil a prestar outros serviços remunerados mediante convênio. Essa visão foi expandida pela lei 14.711/23, que, ao alterar a lei dos notários e registradores (lei 8.935/1994), formalizou a atuação de tabeliães como mediadores, conciliadores e árbitros (art. 7º-A). Essa estrutura transforma os cartórios em potenciais “postos avançados” da Administração Pública, capazes de oferecer serviços de cidadania de forma capilarizada e próxima da população, reforçando seu papel como parceiros do Estado (LESSA, 2024).

  1. O modelo italiano: A eficiência dos filtros obrigatórios

A Itália, enfrentando uma crise crônica de morosidade judicial, adotou uma estratégia distinta: a imposição de filtros rigorosos para o acesso à Justiça. O decreto legislativo 28/10 instituiu a mediazione obbligatoria (mediação obrigatória) como condição de procedibilidade para uma vasta gama de matérias cíveis e comerciais (GARANI; DENARDI, 2021). A ausência de uma tentativa válida de mediação implica a inadmissibilidade da ação judicial (MAIA, 2023). Contudo, o papel do notário italiano (notaio) nesse processo é consideravelmente mais restrito que o de seu par brasileiro. A mediação, embora possa ser conduzida por notários credenciados, ocorre em estruturas autônomas, não sendo uma função inerente à atividade cartorária como vem se consolidando no Brasil (GARANI; DENARDI, 2021).

  1. Proposta de integração sistêmica: Unindo a força colaborativa brasileira à racionalidade italiana

A análise comparada revela um paradoxo fascinante: o Brasil construiu uma estrutura extrajudicial funcionalmente mais ampla, capilar e integrada, mas, até recentemente, carecia de um mecanismo geral de filtragem processual obrigatória (LESSA, 2024). A Itália implementou filtros eficazes, mas sem aproveitar todo o potencial resolutivo de seu qualificado notariado (MAIA, 2023).

A proposta que emerge desta análise é a síntese dos dois modelos, fortalecida pela visão do foro extrajudicial como um aliado do Poder Judiciário. O Brasil está em posição privilegiada para estender a lógica do filtro obrigatório, já inaugurada na seara fiscal pela resolução CNJ 547/24, para as demais áreas do direito, utilizando a rede de cartórios como os centros operacionais dessa política. A estrutura normativa para tal já existe, com a lei 14.711/23 e o próprio CPC.

A implementação de uma mediação ou conciliação pré-processual obrigatória, conduzida nos cartórios sob a coordenação dos CEJUSCs – Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, transformaria o “interesse de agir” de uma presunção abstrata em um requisito concreto (FOGAÇA; SOUZA NETTO; PORTO, 2021). A possibilidade de celebração de convênios, prevista nas leis 6.015/1973 e 8.935/1994, reforça ainda mais este potencial, permitindo que os cartórios se tornem verdadeiros centros de cidadania.

Conclusão

A crise de litigiosidade não será resolvida com mais recursos para a mesma estrutura, mas com o fortalecimento de uma rede de Justiça colaborativa e multiportas. A experiência brasileira com a desjudicialização demonstra que o caminho da descentralização, quando realizado sob a supervisão e em aliança com o Poder Judiciário, é bem-sucedido. Ao incorporar a racionalidade dos filtros procedimentais obrigatórios do modelo italiano e explorar todo o potencial de sua capilaridade para a prestação de múltiplos serviços públicos, o Brasil tem a oportunidade única de consolidar um sistema de Justiça verdadeiramente plural, eficiente e próximo do cidadão. A revolução silenciosa dos cartórios, como aliados da Justiça, pode, assim, tornar-se a vanguarda de um novo paradigma de acesso à cidadania para o mundo.

ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL (ANOREG/BR). Cartórios em Números: Especial Desjudicialização. 6. ed. Brasília, DF: Anoreg/BR, 2024.

BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1973.

BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos cartórios). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 1994.

BRASIL. Lei nº 13.484, de 26 de setembro de 2017. Altera a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 set. 2017.

BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Dispõe sobre o aprimoramento das regras de garantias, a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, a execução extrajudicial de bens imóveis em concurso de credores e o concurso de credores no âmbito da insolvência da pessoa natural […]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 out. 2023.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2024: ano-base 2023. Brasília, DF: CNJ, 2024.

FOGAÇA, Anderson Ricardo; SOUZA NETTO, José Laurindo de; PORTO, Letícia de Andrade. A desjudicialização e a desjuridificação no direito comparado: aspectos para a resolutividade das demandas. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, v. 7, n. 5, p. 79-105, 2021.

GARANI, João; DENARDI, Eveline. Mediação em cartórios na Itália e no Brasil. Scientia Iuris, Londrina, v. 25, n. 3, p. 92-108, nov. 2021. DOI: 10.5433/21788189.2021v25n3p92.

LESSA, Marcelo. O direito humano e fundamental de acesso à justiça. Migalhas, 28 ago. 2025. Disponível em: O direito humano e fundamental de acesso à justiça – Migalhas. Acesso em: 24 set 2025

MAIA, Renata Christiana Vieira. Mediação Obrigatória e a Negociação Assistida na Itália – Uma Alternativa para Promover a Mediação no Brasil? Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 82, p. 261-290, jan./jun. 2023. DOI: 10.12818/P.0304-2340.2023v82p261.

Fonte: Migalhas

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