O registro de nascimento consiste na primeira de muitas formalidades jurídicas com a qual uma pessoa se depara ao longo da vida. A Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) estabelece, em seu artigo 50, que “todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a registro, no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência dos pais, dentro do prazo de 15 dias, que será ampliado em até três meses para os lugares distantes mais de 30 km da sede do cartório.”
Apesar de obrigatório, a última pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que cerca de 3 milhões de brasileiros não possuem registro civil de nascimento. Considerando as diferentes regiões do país, conclui-se que “no sul, 0,28% da população não tem registro civil; no sudeste, 1,1%; centro-oeste, 1,23%; nordeste, 2,5% e no norte, 7,5%” [1]. Os dados são alarmantes e indicam que o tema do registro civil merece maior atenção no debate público.
Historicamente, o registro civil é considerado um instrumento de segurança jurídica, permitindo que terceiros possam saber, por exemplo, se a pessoa com quem estão contratando é casada e se a anuência do cônjuge é ou não necessária (a depender do regime de bens) à validade do negócio que pretendem celebrar.
Atualmente, contudo, o papel do registro civil transcende a mera preocupação com a segurança jurídica e a publicidade de determinadas informações. Na prática, a regularidade do registro configura condição essencial para o exercício de diversos direitos fundamentais da pessoa humana. A ausência de registro de nascimento revela-se especialmente nociva, por impossibilitar a emissão de praticamente todos os documentos pessoais, dificultando o acesso aos direitos mais elementares e criando uma verdadeira casta de “pessoas invisíveis” ao olhar da sociedade formal.
É o que ilustra o caso de Vilma de Souza Muniz, obrigada a permanecer internada por dois anos no Hospital de Araruama (RJ) por não conseguir se cadastrar no Sistema de Regulação de Vagas da Saúde para dar início a procedimento de diálise ambulatorial, em virtude da falta de registro de nascimento. Foi necessário um processo judicial para que Vilma pudesse ser inserida no cadastro e outro processo judicial para que, aos 43 anos de idade, pudesse receber a sua primeira certidão de nascimento.
Vilma já sabe, porém, que seu périplo ainda não havia se encerrado: “Passei por muito sufoco, mas agora, a primeira coisa que vou fazer é tirar minha identidade, CPF e minha carteira de trabalho. Depois disso vou correr atrás da minha aposentadoria”. Como bem ressaltado pela defensora pública Beatriz Cunha, que representou Vilma, “o reconhecimento do direito à identidade, assim, acaba por viabilizar o exercício dos demais direitos. Sem certidão de nascimento, há dificuldade de atendimento no sistema de saúde; de matrícula de criança na escola; de trabalho, pois inviável tirar a Carteira de Trabalho e Previdência Social; além de que a pessoa fica excluída de programas de prestação continuada e de distribuição de renda, por exemplo. É, portanto, indispensável para a participação em uma sociedade democrática” [2].
As causas da ausência de registro são múltiplas: vão desde a dificuldade de acesso aos sistemas registrais no interior mais remoto do país ao estigma decorrente do abandono paterno [3], passando pelo machismo e pelo racismo que também contribuem para o subregistro de nascimentos no Brasil. Em entrevista ao El País, a jornalista Fernanda Escóssia, autora do livro “Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documentos”, conta que conheceu “uma mulher que não foi registrada porque o pai disse que não tinha filha ‘muito preta’ e outra cujo progenitor só registrava os filhos homens, porque ‘mulher não precisa disso” [4].
Não é apenas a ausência de registro de nascimento, contudo, que representa um embaraço ao livre desenvolvimento da personalidade. A dificuldade de modificar informações constantes do registro também pode ocasionar graves lesões a direitos fundamentais. No que se refere ao nome, por exemplo, o Brasil insiste no apego a uma tradição registral caracterizada pela imutabilidade do nome e por um forte controle estatal sobre suas alterações, herdada da experiência cultural ibérica. Nessa direção, o artigo 57 da Lei de Registro Públicos determina que “a alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa”, enquanto o artigo 58 proclama que “o prenome será definitivo” [5].
Diferentes leis têm sido editadas nas últimas décadas para admitir hipóteses de alteração do nome, como a Lei 9.708/1998, que admite a substituição do prenome por apelidos públicos e notórios, e a Lei 11.924/2009, chamada Lei Clodovil, que autoriza o enteado ou enteada a adotar o nome de família do padrasto ou madrasta. Fora destas hipóteses de autorização legal expressa, contudo, os cartórios e as próprias cortes judiciais têm, em regra, se mantido atrelados ao dogma da imutabilidade do nome, cujo anacronismo se mostra ainda mais evidente diante do irrestrito reconhecimento da possibilidade de alteração do gênero no registro civil pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2018 (ADI 4.275) [6].
Para contornar a imutabilidade do nome, não raro se recorre, na prática advocatícia, à exceção normativa contida no parágrafo único do artigo 55 da Lei de Registros Públicos, segundo o qual “os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores”. Isso gera processos judiciais inusitados em que o autor procura demonstrar o quanto é exposto a situações vexatórias em virtude de seu prenome (em autêntico inventário de humilhações) enquanto o Poder Judiciário é colocado na curiosa situação de decidir se a pessoa que se dá ao trabalho de mover um processo por conta disso está ou não sendo efetivamente ridicularizada.
Não há dúvida de que processos desta natureza serão vistos com espanto em um futuro próximo. A tendência é que, como ocorreu em outros países, o nome deixe gradativamente de ser visto como uma imposição do destino ou um signo estatal para se tornar progressivamente um espaço de autonomia existencial da pessoa humana. O argumento usualmente suscitado contra essa transformação é a possibilidade de fraude aos credores ou à persecução penal, mas é evidente que esse tipo de estratagema pode ser facilmente evitado por meio de um sistema registral que mantenha o histórico de eventuais alterações, a ser acessado em caso de efetiva demonstração de uma tentativa de burlar a lei – a qual não deve ser nunca presumida.
Outra questão que merece atenção diz respeito ao registro das chamadas “crianças intersexo”, ou seja, crianças que naturalmente apresentam características sexuais que não se encaixam nas noções típicas de sexo feminino ou masculino. Sem que houvesse a definição de sexo da criança na Declaração de Nascido Vivo, emitida no ato do nascimento, os cartórios de registro civil não podiam proceder ao assento do nascimento, pois a Lei de Registros Públicos exige que contenha o “sexo do registrando” (artigo 54, 2º). Nesses casos, era necessário que a família ajuizasse uma ação para obter o registro da criança, que permanecia sem documentação enquanto aguardava a decisão judicial. Consequentemente, a criança intersexo ficava privada de acesso a planos de saúde, matrícula em creches, além de outros serviços públicos e privados que dependem do registro de nascimento.
Em agosto deste ano, porém, a Corregedoria Nacional da Justiça editou o Provimento nº 122/2021, ratificado pelo plenário do Conselho Nacional de Justiça. Tal provimento estabelece que crianças intersexo poderão ser registradas com o sexo “ignorado” no assento de nascimento, quando tal informação constar da Declaração de Nascido Vivo. De acordo com o artigo 3º do Provimento nº 122/2021, a posterior inclusão do sexo “será feita por opção, a ser realizada a qualquer tempo e averbada no registro civil de pessoas naturais, independentemente de autorização judicial ou de comprovação de realização de cirurgia de designação sexual ou de tratamento hormonal, ou de apresentação de laudo médico ou psicológico”. Restou expressamente facultada, ainda, a mudança do prenome juntamente com a opção pela designação de sexo (artigo 3º, §1º).
Em linhas gerais, o provimento 122/2021 segue a tendência observada em países como a Alemanha, que, em dezembro de 2018, editou lei para introduzir uma terceira designação para preenchimento do gênero no assento de nascimento – a designação “diverso” –, levando em consideração justamente a situação de pessoas cujo sexo não está definido no momento do nascimento [7]. No Brasil, tem sido objeto de críticas, contudo, a opção do CNJ por designar o sexo das crianças intersexo como “ignorado”. De acordo com Dionne Freitas, diretora consultora de saúde da Aliança Brasileira Intersexo, tal nomenclatura “não é o ideal. Você está ignorando a condição biológica dessa criança, ela é intersexo ou sexo diverso” [8].
Há que se destacar, por fim, que o reconhecimento de novas configurações familiares também produz reflexo sobre o assento de nascimento das crianças brasileiras. A Lei de Registros Públicos determina que constem do referido assento “os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais” (artigo 54, 7º). Tal informação, outrora singela, ganhou em sofisticação com o reconhecimento pelo STF dos institutos da paternidade socioafetiva e, também, da multiparentalidade, situação em que se identifica mais de dois vínculos parentais em relação ao mesmo filho [9].
Em 2017, o CNJ editou o Provimento nº 63, alterado, posteriormente, pelo Provimento nº 83/2019, para disciplinar o reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva (artigo 10) e a possibilidade de assentamento no registro de nascimento dos vínculos plúrimos advindos da multiparentalidade (artigo 14). Medida interessante trazida pelo provimento do CNJ diz respeito à condição exigida para o reconhecimento da paternidade socioafetiva a maiores de 12 anos, que devem consentir com tal reconhecimento (artigo 11, §4º). Há, contudo, passagens do provimento do CNJ que parecem contrariar o próprio espírito da norma, como a introdução da necessidade de um parecer favorável do Ministério Público como requisito para o registro da multiparentalidade (artigo 9º). Além disso, o referido Provimento limita a possibilidade de alteração extrajudicial a um único ascendente socioafetivo, quer do lado paterno, quer do lado materno, devendo a inclusão de mais de um ascendente socioafetivo tramitar pela via judicial (artigo 14, §§1º e 2º).
Todas as questões até aqui examinadas revelam, a rigor, a necessidade de lançar um novo olhar sobre o registro civil das pessoas naturais, que parta do reconhecimento da alteração de seu papel na vida contemporânea: outrora visto como repositório sacramental (e, portanto, inalterável) de informações úteis a terceiros, o registro civil tornou-se, pouco a pouco, a via imprescindível de acesso à concretização de direitos fundamentais, como saúde e educação, e um instrumento privilegiado para a realização de todas as potencialidades da pessoa humana, quer no tocante ao livre exercício de sua autonomia existencial, quer no tocante ao desenvolvimento de suas relações com seus familiares.
Essa nova visão do registro civil – funcionalizado à dignidade humana e à solidariedade social – precisa ser o ponto de partida para uma atuação proativa dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, voltada a suprir carências, consolidar avanços e desbravar novas fronteiras, de modo a consagrar um mecanismo registral dúctil, que reflita efetivamente a realidade, com todas as suas complexidades e transformações, e não uma realidade que seja recortada para caber nos limites estreitos e formalistas de um repositório que só possa refleti-la pela metade e, portanto, de modo equivocado. O erro do invisível não é dele, mas de quem deixa de enxergá-lo.
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[1] Agência Brasil, “3 milhões de brasileiros não têm registro civil de nascimento”, disponível em: www.agenciabrasil.ebc.com.br, publicada em 23.11.2021.
[2] Informações extraídas da reportagem de Marcelle Bappersi, “Mulher sem documentos recebe sua primeira certidão de nascimento”, disponível em: www.defensoria.rj.def.br, publicada em 20.9.2018. A matéria relata, ainda, que “não era só Vilma que sofria por ter não poder exercer seus direitos. O filho dela, de 31 anos, também não tinha certidão de nascimento em decorrência da falta de registro da mãe.”
[3] CNN Brasil, “Número de crianças sem o nome do pai na certidão cresce pelo 4° ano seguido”, disponível em: www.cnnbrasil.com.br, publicado em 7.8.2021.
[4] El País, “Invisíveis no Brasil, sem documento e dignidade: ‘Eu nem no mundo existo’”, disponível em: brasil.elpais.com, publicado em 28.11.2021.
[5] Na íntegra: “Artigo 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. Parágrafo único. A substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Ministério Público.”
[6] No julgamento da ADI 4.275, o STF atribuiu interpretação conforme à Constituição ao artigo 58 da Lei de Registros Públicos.
[7] DW, “Alemanha aprova ‘terceiro gênero’ em certidões de nascimento”, disponível em www.dw.com, 14.12.2018.
[8] “Sexo ignorado” na certidão de nascimento é avanço ou retrocesso?, disponível em: www.plural.jor.br/noticias/vizinhanca/sexo-ignorado-na-certidao-de-nascimento-e-avanco-ou-retrocesso/, publicado em 25.1.2021.
[9] Sobre o tema, seja consentido remeter a Anderson Schreiber e Paulo Franco Lustosa, Efeitos Jurídicos da Multiparentalidade, in Revista Pensar, Fortaleza, v. 21, n. 3, set./dez. 2016, pp. 847-873.
*Anderson Schreiber é professor titular de Direito Civil da UERJ e sócio do escritório Schreiber Advogados.
Fonte: Jota