Decisões do TJ/SP que aplicam equivocada tese de enriquecimento sem causa, transferem ao fiduciário ônus e consequências do descumprimento contratual pelo devedor e condenam o credor à ‘aquisição’ do imóvel constituído em garantia.
A abstrata possibilidade de enriquecimento imotivado do fiduciário intimida o instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia desde a promulgação da lei 9.514/97 mormente quando – depois do inadimplemento contratual absoluto pelo fiduciante e frustrada a venda do imóvel nos públicos leilões – ocorre a transmissão definitiva da propriedade para o credor.
Esse constrangimento, que no passado era enfrentado especificamente por devedores e fiduciantes, recentemente passou a ser experimentado também pelos credores fiduciários na esteira de uma sequência de decisões emanadas da 29ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[1] determinando ao credor, nesses casos, que efetue em favor do fiduciante o pagamento de “quantia relativa à diferença entre o valor da avaliação e o valor atualizado da dívida (com todos os encargos contratuais) somado ao das despesas devidamente comprovadas, apurado no momento da adjudicação do imóvel (data do segundo leilão negativo), corrigido monetariamente a partir de então e acrescido de juros de mora desde a citação”, além do ônus sucumbencial.
Visivelmente desacertadas aquelas decisões condenam o fiduciário à ‘adquirir’ o imóvel por valor superior ao da oferta pública e universal de venda no segundo leilão ao, por absurdo, impor o pagamento do valor ‘relativo à diferença entre o valor de avaliação e o valor atualizado da dívida’, independentemente do valor do bem alcançável no mercado e transferem do devedor para o credor, de forma enviesada, os ônus e responsabilidades do descumprimento contratual pelo devedor.
Peço vênia para articular algumas considerações sobre o assunto.
Essa disparidade entre o valor da garantia e o valor garantido, em geral muito menor, apontada desde os primórdios da lei e considerada a principal fragilidade da alienação fiduciária, cria um gap patrimonial apto a desiquilibrar as relações contratuais e granjeou maior relevância nos últimos anos pelos reflexos potencialmente danosos ao fiduciante quando adotada a solução derradeira[2] determinada pela lei 9.514/97 com a transmissão definitiva do imóvel para o patrimônio do credor fiduciário.
Urge, portanto, realinhar a norma legal, mediante atividade legislativa, para obstar que o credor opere indevidamente os procedimentos da execução extrajudicial, com o fito de angariar benefícios que caracterizem, ao final, o aviltante “enriquecimento sem causa”.
Isso não significa, no entanto, assentir cabalmente com a equivocada tese de enriquecimento do credor fiduciário tão-só pela assunção da propriedade plena do imóvel após as infrutíferas tentativas de venda por meio dos leilões públicos.
No entanto, a venda do imóvel objeto da garantia para terceiros em leilão, assim como a transmissão plena e definitiva da propriedade ao credor fiduciário após o público, efetivo e frustrado leilão, estão notoriamente fundadas no parágrafo 5º do art. 27 da supradita lei 9.514/97, não se amoldando, nesse aspecto, à definição indicada.
Também não se encontrará nas modalidades tratadas acréscimo ou decréscimo patrimonial das partes que se possa correlacionar de forma imediata ou mediata.
Na arrematação do bem em leilão, o licitante pagará em moeda contada – exclusivamente – o montante correspondente ao da oferta pública de venda, que será utilizado para a liquidação da dívida, reembolsando-se ao fiduciante o que sobejar.
Na transmissão da propriedade plena, definitiva e incondicionada do bem ao fiduciário, haverá a conversão de ativo financeiro (créditos de titularidade do credor não adimplidos espontaneamente pelo devedor) em ativo imobiliário (transferência plena e definitiva da propriedade do imóvel ao credor, mediante quitação total ou parcial da dívida, conforme o caso), enquanto ao devedor restará elidido o passivo financeiro (dívida e encargos).
Tanto a conversão quanto a elisão se darão por grandeza correspondente ao valor de mercado do bem, representado pela quantia exigida para a venda pública, regularmente proposta.
Avaliação e mercado são valores comumente não convergentes. O valor de avaliação é apurado através de perícia ou outro meio técnico-profissional aceitável e servirá de indicador para o lance mínimo de venda. O valor de mercado, por sua vez, espelhará o lance máximo considerado atrativo pelos licitantes e interessados na aquisição do bem.
Assim, nos exatos contornos do procedimento definido pela lei 9.514/97, demonstrada a ausência de interesses que descarte o valor de avaliação, parece lógico que o bem seja oferecido pelo seu valor de mercado, neste caso representado, por força de determinação legal, pelo valor total da dívida. Quando, ainda assim, não se apresentarem lances vencedores, manda a lei que a propriedade seja transferida definitivamente ao credor pelo valor da dívida, porque coincidente com o valor de mercado utilizado para a decisiva oferta pública de venda, de maneira que, à princípio, não se poderá comprovar enriquecimento ilícito ou imotivado.
Para afastar possível desvio ou ilegalidade a lei processual vigente[3] veda a aceitação de preço vil pela oferta, assim considerado o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz ou a cinquenta por cento do valor de avaliação, que, dessa forma, passarão a configurar o valor de mercado do imóvel para todos os fins.
No caso específico das instituições financeiras, entretanto, a expectativa da colheita de lucros não operacionais pela especulação imobiliária e, portanto, da própria caracterização de qualquer benefício ilícito ou de enriquecimento não justificado, pode ser considerada inexistente, uma vez que esses imóveis recebidos como “bens não de uso” deverão ser compulsoriamente vendidos nos prazos estipulados pelo Banco Central do Brasil[4], sob pena de aplicação das cominações legais cabíveis, que incluem restrições ao limite de operações de empréstimos com liquidez. Para além disso, a recepção e retenção desses bens requer vultoso dispêndio de recursos para o pagamento das despesas de administração, manutenção, segurança, tributárias, condominiais etc. a reclamar a imediata realização de campanha de venda direta pela melhor oferta.
Concluindo o raciocínio, se o bem é oferecido à venda, com a estrita observância da lei, por valor correspondente à metade do valor de avaliação, este é o valor de mercado a que estará sujeito qualquer interessado, inclusive o credor no exercício de seu direito de aquisição da propriedade. Ora, se qualquer terceiro poderia adquirir o bem pelo valor da oferta, não se justifica a imposição do julgado que o obrigue a pagamento maior pela adoção do valor da avaliação.
E, no caso julgado, ainda que se considere que a transmissão da propriedade se deu por preço vil – inferior a cinquenta por cento do valor de avaliação do imóvel – uma justa condenação estaria limitada ao pagamento complementar igual à diferença entre o valor de mercado, definido na forma acima referida. e o valor atualizado da dívida.
Obviamente, em certame de lanços com estipulação prévia de oferta mínima é inesperado que alguém faça, de boa-fé, proposta de valor inferior ao lance inicial e, da mesma forma, é impensável que dessa oferta o leiloeiro faça o registro.
Se o edital foi regularmente publicado – e não há nenhuma informação em contrário – e o leilão efetiva e comprovadamente realizado – o que está confirmado nos relatórios – a ausência de lance, coincide ao não ofertamento de proposta de valor igual ou superior ao montante da dívida, não havendo na lei de regência, nem mesmo no código processual, dispositivo que condicione a existência de lance para a validade da praça.
Com relação a esse argumento, cumpre perquirir: (a) se a existência de registro de oferta descartada pelo leiloeiro, por valor inferior ao lance mínimo alteraria, de alguma forma, a decisão prolatada?; (b) se a inexistência de lance que descaracteriza o certame, como decidido naqueles julgados, não invalidaria, por consequência, o leilão, tornando-o nulo de pleno direito?; e (c) se o leilão pode ser nulo de pleno direito a transmissão da propriedade ao fiduciário, não seria, igualmente, nula de forma, a exigir a retomada do procedimento desde aquele ponto, o que faria nulo também o julgado condenatório?
A preservação desse instrumento de garantia carece da confiança do mercado financeiro de que a segurança jurídica que a lei 9.514/97 não será abalada por decisões judiciais equivocadas como as que foram aqui expostas. É preciso que, sem abandonar as lutas pelo justo atendimento dos anseios do fiduciante, se faça também a defesa do regular direito do fiduciário.
[1] Ap. Cível 100368597.2020.8.26.0292; Rel. José Augusto Genofre Martins; 29ª Câmara de Direito Privado; Julg.28/06/2022; Ap. Cível 1002455-19.2017.8.26.0100; Rel. Fabio Tabosa; 29ª Câmara de Direito Privado; Julg. 25/02/2022; Ap. Cível 1007621-29.2018.8.26.0704; Rel. Mário Daccache; 29ª Câmara de Direito Privado; Julg. 16/02/2022.
[2] Lei nº 9.514, de 20/09/1997, art. 27, § 5º.
[3] Código de Processo Civil, art. 891 e § único.
[4] Lei 13.506/2017, art. 3º, § 2º, II e Circular BCB 909, de 11/01/1985.
Mauro Antônio Rocha é advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral. Vice Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral
Fonte: Migalhas