A Justiça de Goiás reconheceu o vínculo de parentalidade socioafetiva estabelecido entre uma jovem com sua tia biológica e o marido desta. Ainda criança, ela passou a ser criada pelo casal e manteve a conexão com eles quando eles foram viver no exterior. No assento de nascimento da requerente, deverão ser incluídos os nomes dos pais socioafetivos, bem como dos avós, sem exclusão do nome da mãe biológica. A decisão é da 2ª Vara de Goiânia.
De acordo com os autos, a mãe biológica entregou sua filha para a irmã criar junto ao marido desta. Em 2004, o casal se mudou para o exterior, enquanto a menina, impossibilitada, precisou permanecer no Brasil. Assim, ela passou a viver aos cuidados dos pais do marido de sua tia, que passaram a tratá-la como neta.
Naquele cenário, o casal de idosos que permaneceu com a menina no Brasil regularizou a guarda na Justiça. Posteriormente, resolveram registrá-la no nome dos pais afetivos, mas acabaram denunciados por suposto uso de documento público ideologicamente falso, pois não tinham conhecimento de que a infante já havia sido registrada pela mãe biológica.
Apesar da distância entre os países, a tia e seu marido sempre deram auxílio financeiro e estiveram presentes na vida da menina, mantendo a afetividade e a comunicação por meio de aplicativos de comunicação virtual. Já a mãe biológica tem total ciência de todo o ocorrido e concorda com o reconhecimento dos pais socioafetivos de sua filha, hoje já em maioridade.
O laudo pericial concluiu que a moça reconhece o casal como seus pais, tendo construído com eles vínculos afetuosos. Além disso, ao se referir aos seus irmãos, mencionou os filhos biológicos do casal. Observou-se a presença de vinculação afetiva de sua parte para aqueles a quem reconhece como pai, mãe e irmãos, tanto quanto manifestou com bastante convicção o desejo de que a situação possa ser regularizada.
Reconhecimento com base no afeto
“Trata-se a filiação socioafetiva do reconhecimento da maternidade/paternidade com base no afeto, sem que haja vínculo sanguíneo entre as pessoas”, pontuou o juiz Wilson Ferreira Ribeiro, responsável pelo caso. “Possuir o estado de filho significa ser tratado como se filho fosse, inclusive perante a sociedade. Deriva de um ato de vontade, respeito e reciprocidade construído ao longo do tempo, no qual a afeição é a base e não há ligação biológica.”
Os pais socioafetivos também percebem a jovem da mesma forma que os filhos biológicos. No entanto, mostraram inabilidade de lidar com tranquilidade com o tema adoção, talvez proveniente de suas próprias questões de vida e/ou de pouco esclarecimento acerca da questão, de acordo com a análise judicial.
“Deixo de determinar a alteração do patronímico conforme requerido na inicial, pois a filiação socioafetiva não tem como consequência a completa alteração do nome da filha. O que poderia ocorrer seria a simples inclusão do patronímico dos pais socioafetivos e não a exclusão de qualquer patronímico dos pais biológicos. A alteração pretendida deve ser pleiteada perante o juízo competente, de registros públicos”, concluiu.
Avanço para o Direito das Famílias
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, o advogado Pedro Sousa Barra atuou no caso. Ele diz que a decisão foi acertada e bem fundamentada pelo magistrado. “Sempre houve essa afetividade entre a filha e os pais socioafetivos. Afinal, ela os reconhece como pais desde que se entende por gente”, comenta.
O advogado lembra que foram os pais socioafetivos que deram auxílio financeiro e emocional à jovem desde tenra idade, apesar da distância. “Isso foi comprovado em um estudo psicossocial com todos eles: com os pais socioafetivos, a mãe biológica, os avós socioafetivos e a própria filha”, destaca. Durante o período escolar, a matrícula sempre foi feita em nome do casal, que inclusive arcava com os gastos da menina.
O reconhecimento da filiação socioafetiva, mesmo as partes vivendo em países diferentes, representa um avanço para o Direito das Famílias, segundo Pedro. “Os clientes chegaram até nós procurando uma solução para que pudessem fazer o passaporte e fossem viabilizadas as visitas da filha aos pais. No fim, ficaram muito emocionados com a decisão.”
“Neste caso, conseguimos garantir que esse convívio ultrapasse a limitação dos aplicativos para que chegue ao contato físico. Hoje, contudo, podemos perceber que com as vias eletrônicas, as ligações e as chamadas de vídeo, a socioafetividade pode ser mantida em países diferentes. A tendência é que essa questão evolua cada vez mais no Direito das Famílias”, conclui Pedro Sousa Barra.
Famílias multinacionais são tema da 61ª edição da Revista IBDFAM
As famílias multinacionais, essas que transcendem as fronteiras, são o tema da 61ª edição da Revista IBDFAM, exclusiva para associados e já disponível on-line. A publicação enfoca as relações de afeto entre pessoas em países distantes, com um destaque para a situação dos refugiados. Há também uma história parecida com o caso em tela: uma família brasileira que vive na Espanha, em que um adolescente é criado lá por sua tia biológica, reconhecida recentemente como mãe socioafetiva na Justiça de Goiás. Saiba mais.
Fonte: IBDFAM