Um projeto de lei encabeçado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, pretende alterar regras de Direito do Consumidor e medidas anticoncorrenciais como forma de auxiliar as empresas durante a crise do coronavírus. Os temas constam no PL 1.179/2020. Caso o projeto seja aprovado deixará de ser qualificada infração à ordem econômica a venda de produtos e a prestação de serviços abaixo do preço de custo, além de ficar suspensa a possibilidade, pelo consumidor, de desistência de compras feitas de forma online.
O PL foi protocolado no Senado pelo presidente em exercício da Casa, Antonio Anastasia (PSD-MG), e trata da situação dos contratos privados para o período da pandemia, ou seja, é excepcional e temporário. Neste cenário, o projeto afasta a carga ilícita de condutas que seriam consideradas anticoncorrenciais. A proposta define que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) considere, quando da análise de casos concretos no futuro, que neste período algumas condutas não podem ser tidas por ilícitas já que o país vive uma situação excepcional.
A proposta considera o dia 20 de março como marco temporal dos temas definidos no texto do projeto. A data é a da publicação do Decreto Legislativo nº 6, que definiu o estado de calamidade pública pela covid-19. As consequências decorrentes da pandemia nas execuções dos contratos não terão, de acordo com o PL, efeitos jurídicos retroativos.
“Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário”, estabelece, fazendo referência aos dispositivos do Código Civil pelos quais os contratos comerciais podem ser revistos diante de fatos imprevistos ou posteriores à locação se isso prejudicar uma das partes contratantes. Estes aspectos não são tidos como imprevistos, ainda que durante a crise.
Mas as medidas de combate e prevenção à disseminação da doença afetam, sim, a logística de entregas de compras feitas online ou por telefone. Como forma de garantir que as entregas sejam feitas, pensou-se em suspender, no período da vigência da lei, o direito do consumidor de desistir da compra no prazo de sete dias.
O Projeto de Lei 1.1179 foi idealizado por Toffoli e elaborado por um grupo de juristas, enfrentando assuntos de direito privado afetados pela pandemia. Ele trata de temas da Parte Geral do Direito Civil (prescrição e decadência), do Direito das Obrigações e Contratos (resolução, resilição e revisão contratual), do Direito das Coisas (condomínio e usucapião), do Direito de Empresa (assembleias societárias), do Direito de Família (prisão do devedor por dívidas alimentares), do Direito de Sucessões (prazos), além de abranger temas de Direito do Consumidor (delivery), de Direito Agrário e da Lei de Proteção de Dados.
As alterações propostas não são definitivas, tendo prazos de vigência definidos para cada trecho. Em conversas com o conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e professor da USP Otavio Luiz Rodrigues Jr.; Fernando Campos Scaff, da Faculdade de Direito da USP e Rodrigo Xavier Leonardo, da Universidade Federal do Paraná, o JOTA destrinchou os temas abordados:
Adiamento da vigência da LGPD por 18 meses
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) exige adaptações e investimentos de diferentes ordens, desde soluções de tecnologia até o refinamento de procedimentos, sob pena da aplicação de sanções às companhias.
A superveniência da pandemia da Covid-19 e o isolamento compulsório tem o potencial de obstaculizar essas adaptações às vésperas da entrada em vigor da LGPD, ensejando a aplicação de multas que podem chegar à casa dos milhões de reais. O projeto propõe uma dilatação do prazo de “vacatio legis”, como, por exemplo, define o projeto do senador Otto Alencar, o PL 1027 — protocolado na última quinta-feira (26/3). A ideia é prorrogar a vigência de dispositivos da LGPD de agosto de 2020 para 16 de fevereiro de 2022.
Suspensão do prazo para desistência de compra online
Durante a pandemia da covid-19, o isolamento compulsório propiciou um aumento vertiginoso das operações de venda com entrega mediante delivery. Nas vendas realizadas fora do estabelecimento do fornecedor, como se sucede com as operações on line, o consumidor pode “desistir” da aquisição, e tecnicamente desfazer unilateralmente o contrato, devolvendo o produto com a restituição da integralidade do preço. As medidas de isolamento compulsório afetaram sensivelmente a possibilidade de ambos os contratantes (consumidores e fornecedores) desfazerem os contratos de compra e venda. É necessário, para os autores do PL, garantir a segurança e a previsibilidade das vendas por delivery, até mesmo para que as famílias sejam atendidas em suas necessidades, a despeito da limitação de locomoção. Por essas razões, no período de vigência da lei, caso aprovada, a possibilidade de se arrepender das compras on line será obstaculizada.
Práticas anticoncorrenciais
O projeto de lei faz uma modificação relacionada a práticas anticoncorrenciais. Neste período, deixa de ser qualificada como infração à ordem econômica a venda de produtos e a prestação de serviços abaixo do preço de custo e, também, a interrupção, total ou parcial, das atividades de uma empresa sem justa causa. Nestes casos, afasta-se a antijuridicidade dessas condutas que, em tempos ordinários, poderiam ser consideradas anticoncorrenciais. As demais situações adjetivadas pelo legislador, como infração da ordem econômica, continuariam em vigor, mas devem ser interpretadas levando em consideração as consequências provenientes da pandemia da covid-19.
Prazos prescricionais para usucapião até 30/10
No caso da prescrição, o exercício das pretensões (o poder de exigir prestações) pode ser extremamente dificultado pelo isolamento compulsório. Algumas prerrogativas do credor, como a possibilidade interromper o curso do prazo prescricional, também podem ser materialmente prejudicadas. De acordo com os autores do projeto, vem daí a necessidade, neste período de crise, de suspender os prazos prescricionais durante a vigência da lei.
Suspensão da contagem de tempo para usucapião
A usucapião gera a aquisição da propriedade, pelo usucapiente, e a perda da titularidade, pelo proprietário, em virtude do transcurso do tempo adicionado a outros fatores. Durante o período de vigência da lei seria reconhecida a dificuldade, pelos proprietários, de tomar providências efetivas para defender o exercício da propriedade e, assim, evitar a usucapião nas diferentes modalidades existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Por essa razão, no espaço de tempo de vigência da lei pretendida, ficaria suspensa a contagem do prazo para a usucapião.
Suspensão de ordens de despejos até 31/12
Com a aprovação do PL em sua redação atual, nas demandas judiciais propostas a partir de 20 de março ficaria vedada a determinação liminar de despejo até 31 de dezembro. A proposta legislativa busca resguardar a situação de fato nas locações em virtude das circunstâncias excepcionais vivenciadas no Brasil. Não seriam obstaculizadas a tramitação dos processos judiciais de despejo, apenas a tutela de urgência de despejo seria momentaneamente afastada. A provisória vedação às liminares de despejo é aplicável a todas as modalidades de locação.
Situações previsíveis
O aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização e também a substituição do padrão monetário são fatos econômicos vivenciados na história do Brasil desde o século XX. A jurisprudência dos tribunais superiores cuidadosamente afastou a qualificação jurídica desses fatos como imprevisíveis para o Direito Civil e Direito Comercial. Ao contrário, para o Direito do Consumidor a exigência dos fatos imprevisíveis é dispensada. O PL, de acordo com os autores, sublinha esta interpretação consolidada e, assim, procura evitar uma judicialização abusiva: preservam-se os contratos, mas não se prejudicam os consumidores, que seguem dispensados dos requisitos mais rígidos do Código Civil.
O grupo de trabalho conta que têm sido constantes as informações de que contratantes, por vezes, têm declarado o descumprimento antecipado dos contratos por conta da covid-19, impondo uma moratória forçada com a esperança de obter benefícios em revisões contratuais. Estas posturas precisam, para eles, ser refreadas, reservando a revisão contratual para os casos em que o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor já regulam bem, mesmo com a pandemia.
Terras para estrangeiros
As sugestões vão em dois sentidos. Segundo os autores, o arrendamento e a parceria têm uma série de cláusulas previstas, em um contexto histórico de quando havia uma ideia de que o arrendatário teria uma condição econômica inferior à do arrendante, o dono da terra. No Estatuto da Terra se estabeleceu proteções a essa relação, como prazos mínimos de contratação e renovação automática, a menos que o proprietário diga com seis meses de antecedência que não quer mais e ele mesmo vai assumir a atividade naquela área, além de valores máximos de pagamento, tanto pra parceira como para arrendamento. No entendimento dos juristas que elaboraram a proposta, porém, a realidade não é mais essa. Hoje, os arrendatários são grandes empresas, como de celulose, laranja, madeira, usinas que têm benefícios de uma legislação que não foi pensada originalmente para elas — mas para arrendatários que eram pessoas físicas com baixa condição econômica, que lavravam elas mesmo a terra e eram a parte frágil. E, no momento de crise, eles entendem este fator como um entrave para o contrato, que fica amarrado, com benefícios exagerados.
O segundo ponto tem a ver com o arrendamento. Diante da permissão para que estrangeiros possam apenas ter parcerias, e não se tornarem arrendatários, isso poderia constituir um entrave à atividade. A parceria tem uma incerteza quanto ao que o proprietário vai perceber, já que apenas com lucro é que há pagamento, e o arrendamento já estabelece logo as regras do jogo. Essa reinterpretação de terras para estrangeiros aconteceu porque a limitação tolhe a própria atividade. Neste período, uma das atividades que deve dar suporte ao Brasil é a agrária e pecuária, segundo os autores do projeto, então está-se tentando desregulamentar a forma de contratação, derrubar algumas limitações para incentivar a atividade e a concorrência.
Fonte: Jota